«Mais de 250 personalidades exigem regulamentação da lei Impedir a regulamentação da lei da eutanásia é “jurídica e politicamente inaceitável”. Mais de um ano depois da publicação do diploma que abre portas à morte medicamente assistida, quando passaram mais de 400 dias face a um prazo de regulamentação que era de três meses, um conjunto de mais de 250 personalidades juntou-se para exigir a concretização prática da lei. Com subscritores da esquerda à direita do espectro político, a carta aberta exige que o Governo “cumpra a obrigação de regulamentar a lei”.» (Público, 12.09.2024)
Sou uma das subscritoras e deixo aqui o texto da Carta, na íntegra, divulgado também no Público.
Regulamentar a Lei da Eutanásia é respeitar a democracia
Por cinco vezes, a Assembleia da República aprovou, por larga maioria, a lei que despenaliza, em determinadas circunstâncias, a morte medicamente assistida. À aprovação da versão inicial da lei, no início de 2020, o Presidente da República respondeu com dois vetos políticos. Seg,uiram-se duas decisões do Tribunal Constitucional que exigiram do poder legislativo a adopção de acertos pontuais e de clarificações dos conteúdos normativos daquele diploma. A versão final da lei, aprovada pelo Parlamento em 31 de Março de 2023 e publicada a 25 de Maio, incorporou todas essas clarificações e todos esses acertos, possibilitando a promulgação pelo Presidente da República, que pôs fim a um dos mais participados e criteriosos processos legislativos ocorridos na democracia portuguesa. Não há, portanto, razão para que a lei não seja regulamentada e aplicada.
A Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio, estabelece, no seu artigo 31.º, que “o Governo aprova, no prazo de 90 dias após a publicação da presente lei, a respectiva regulamentação”. Como é notório, o prazo referido foi lamentavelmente ultrapassado, adiando-se por mais de um ano a regulamentação da lei.
A regulamentação da lei que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível é uma tarefa legalmente vinculada. E é também, neste caso, uma tarefa facilitada por estar em causa um diploma reconhecidamente densificado, a um nível aliás sem paralelo no direito comparado.
Os pedidos de fiscalização sucessiva da constitucionalidade, pendentes ou futuros, não suspendem o dever de regulamentação. Assim o determina a Constituição, precisamente para que ninguém tente paralisar actos legislativos através de sucessivos pedidos de fiscalização da constitucionalidade, o que, como é evidente, desvirtuaria o Estado de Direito.
A posição que alguns titulares de cargos políticos vêm defendendo, na legislatura em curso, no sentido de que a regulamentação da Lei nº 22/2023 não deve ser levada a cabo, constitui um inequívoco apelo ao incumprimento da lei. Num Estado de Direito democrático, assente no primado da lei e no respeito pela vontade popular, defender que um direito consagrado em lei da República não seja concretizado é inaceitável. Como sucedeu em vários momentos do longo processo legislativo que culminou na aprovação da Lei nº 22/2023, o que os adversários da regulamentação pretendem é criar mais um obstáculo artificial a que entre em vigor uma lei cujo conteúdo não lhes agrada. Mal andaria a democracia portuguesa se a expressão da vontade da larga maioria do Parlamento, cinco vezes reiterada, ficasse refém do desagrado de quem, nessas cinco vezes, não teve vencimento de causa.
O que a democracia exige é, pois, que não sejam acolhidas posições de desrespeito pela legalidade democrática e constitucional, e que se cumpra a obrigação de regulamentar a lei que despenaliza a morte medicamente assistida. E fazê-lo, evidentemente, promovendo a segurança e o rigor jurídicos no respeito escrupuloso pela letra e pelo espírito daquela lei. Após mais de uma década de debate público e democrático, Portugal aprovou uma lei prudente, equilibrada e justa, que respeita a vontade de todas as pessoas. Impedir a sua regulamentação é jurídica e politicamente inaceitável.
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