«Em momentos de maior cinismo, apetece-me agradecer a quem ganha mil euros e votou na AD. A sua generosidade para com os que têm o ‘azar’ de ganhar bem é comovente. E o argumento para a nova política fiscal não podia ser mais classista, como é toda a tralha meritocrática: os invejosos que não querem baixar os impostos a quem ganha mais estão a castigar quem se esforçou. Ficam a saber os milhões de portugueses que, se ganham pouco, é por falta de trabalho e empenho.
Como explica um estudo do Banco de Portugal sobre os efeitos redistributivos dos impostos sobre o rendimento, publicado em dezembro, o atual IRS é “um instrumento privilegiado para reduzir a desigualdade”. Apesar do IRS ser mais progressivo em Portugal, não o é suficientemente, tendo em conta uma desigualdade superior à média europeia. “A taxa média efetiva de IRS em Portugal é baixa”, lê-se no estudo do banco central. Um trabalhador que recebe o salário médio em Portugal paga uma taxa de IRS de 10%, abaixo dos 14% da zona euro.
Depois de uma proposta fiscal que se concentrava exclusivamente nos escalões mais altos, reduzindo a progressividade do sistema, a AD usou a suposta tentativa de conter a emigração de jovens para criar dois regimes em Portugal. Um para os mais jovens, outro para os mais velhos. A guerra de gerações ignora o sacrifício dos que, com poucos estudos e baixos salários, trabalharam para pagar as ferramentas de formação a milhares de jovens que hoje podem competir por um posto de trabalho nos Paí¬ses Baixos, Bélgica ou EUA. Para “protegerem a geração mais qualificada de sempre”, vão ter de pagar impostos muito mais altos do que eles. É tão iníquo um sistema que dá borlas fiscais a estrangeiros como um que permite a quem ganha mais de 6000 euros pagar a mesma taxa de IRS que ‘idosos’ de 36 ou 40 anos que ganhem 1200 euros, um valor abaixo do salário médio. E nada fará para impedir a emigração, que tem tudo a ver com condições laborais e salariais, ambiente nas empresas ou perspetivas de carreira, e muito pouco com impostos. Os nossos salários brutos são muito mais baixos do que os salários líquidos dos países destino da nossa emigração. Na maioria, os impostos até são mais altos.
Há, em Portugal, um défice de dados públicos. Mas pior do que não ter informação é usar dados errados. Foi o que aconteceu com a emigração de jovens qualificados, um tema que ocupou o espaço mediático nos últimos dois anos e foi aproveitado para tornar indiscutível a necessidade de descer os impostos aos jovens. Ficámos a saber, sem grande destaque, que uma alteração de metodologia da análise do INE durante a pandemia explica a suposta debandada — que foi muitíssimo mais alta durante a crise financeira. Tivemos, na realidade, mais 46 mil postos de trabalho ocupados por licenciados e não menos 69 mil, como se dissera. Há é mais licenciados do que as nossas empresas conseguem absorver. Mas foi um pretexto para o Governo com mais curto apoio parlamentar da nossa democracia fazer, quase sem debate, a mais violenta transformação do nosso IRS. É verdade que já existe um regime especial de IRS, mas ao diluir-se ao longo dos primeiros cinco anos funciona como um apoio para o início de vida ativa, não como uma nova estrutura fiscal, quase sem progressividade, que se pode aplicar a um terço de uma vida contributiva.
Se um jovem receber 1000 euros, que é o rendimento de dois terços das pessoas da sua geração, poupa apenas 420 euros anuais a partir do quinto ano. Quem recebe 2500 euros fica com mais 3700 euros por ano. Como a taxa tem um efeito de escadinha, quem ganha 6000 mil euros poupa quase 14 mil euros e quem recebe mais de 10 mil euros por mês ficará com mais 19 mil euros anuais no bolso. A ‘borla’ do PS durava apenas cinco anos, a da AD não só se prolonga no tempo como beneficia de forma muito mais rápida quem mais ganha. É aceitável que os jovens que ganham 1000 euros poupem 5% do seu rendimento e quem ganha 5000 poupe 20%? Vai-se exigir um esforço de mil milhões de euros ao país para ajudar, de forma desproporcional, os jovens mais ricos? Ao garantir uma taxa máxima de 15% para rendimentos que englobam até quem recebe mais de 6000 euros por mês, quatro vezes o salário médio do país, o Estado beneficia quem tem maiores rendimentos. A conta será paga, em perda de serviços, pela imensa legião que ganha pouco mais de mil euros. No IMT, a isenção até aos 35 anos em casas vai até 316 mil euros e oferece-se um desconto de mais de 14 mil euros em casas até 633 mil euros, o dobro do valor médio das casas novas à venda.
Mas podem ficar descansados os abonados mais velhos. Isto é só o balão de ensaio para rebentar com a progressividade do IRS, cavando ainda mais o fosso das desigualdades. A proposta de Montenegro é inspirada na taxa plana da IL e do Chega e está a léguas da visão redistributiva defendida, por exemplo, pela descida do IVA para a eletricidade imposta pelo PS, que fez o Governo tocar as sirenes da estabilidade das contas públicas. Quando é para todos já não há dinheiro. Porque a divergência nunca foi se se desce ou sobe os impostos. Foi e será sempre quem paga.»
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