10.7.22

Há um jardim crioulo em Lisboa

 


«Não está fácil. Localmente, a gritaria é geral. É o dinheiro que mingua na hora de pagar na caixa do supermercado. É a habitação a preços impossíveis. É a onda de calor sufocante que já não é vivido com inocência. É a confusão no aeroporto para quem quer ir e vir. Mas para quem deseja circular no interior da cidade também não está melhor, com excesso de procura para a oferta existente e ainda assim a insistência em todos os discursos é no intensificar e não no refrear. E globalmente não está melhor, com guerra, degradação ambiental e desigualdades gritantes. Há um aroma a conflito logo pela manhã, misturado com a excitação pós-pandemia em tentar viver sofregamente o que não foi possível lá atrás.

Pelo meio, algumas ilhas de esperança. Quem tem ido, nos dois últimos fins-de-semana, aos jardins da Fundação Gulbenkian, em Lisboa, sente-o. Não é tanto o facto de ali estar a acontecer um evento chamado Jardim de Verão (este domingo será o último de nove dias), extensão da exposição Europa, Oxalá, com sessões de cinema e música, sendo esta obra de criadores das novas gerações afro-portuguesas. Até aqui nada de novo. Há décadas que existem protagonistas das comunidades racializadas a ocupar palcos por esse país fora, inclusive ali, na Gulbenkian, onde acontecimentos como o Estado do Mundo ou o Próximo Futuro foram tanto reflexo como prenúncio de dinâmicas interculturais vindouras. A surpresa, a acontecer, não tem de forma nenhuma que ver com os corpos negros em palco. A novidade é, num lugar com grande peso simbólico como a Gulbenkian, olhar-se à volta e haver tantos ou mais corpos negros do que brancos entre o público, desfrutando do espaço, em pé, dançando, ou deitado na relva, comungando de um espírito e espontaneidade como nunca ali se vira.

A Europa por vir que a exposição no interior pretende mostrar e celebrar está ali, no exterior, com uma grande diversidade entre a assistência, com o exclusivismo a ser substituído pelo acesso inclusivo, com pessoas de múltiplas origens, trajectos e aspirações, a que se aliam outras formas de estar e ocupar o local. Sim, há uma Lisboa crioula, para citar Dino d’ Santiago, o responsável pela programação musical, ao lado de DJ Marfox, e ela está ali representada. Tal como existe uma outra ideia de Europa possível, onde os “outros” que passamos o tempo a designar já são, afinal, apenas um “nós” plural, complexo mas desafiante, transportando novas interrogações, capazes de introduzirem novos modos de ser e sentir. Sem suavizações (até porque essa não é a realidade experimentada pela maioria e continuamos uma sociedade segmentada, antagónica e assimétrica), eis algo estimulante que vale a pena anotar.

Até porque não é facto isolado nesta Primavera-Verão de Lisboa. Noutros lugares emblemáticos, como o teatro D. Maria II, na residência oficial do primeiro-ministro António Costa, durante as comemorações do último 25 de Abril, ou através da exposição Interferências - culturas urbanas emergentes, patente no MAAT, que originou há semanas a reinterpretação de uma intervenção mural colectiva que ocorreu no pós-25 de Abril de 1974, tem-se verificado o mesmo. Claro que, em simultâneo, a essa maior visibilidade e protagonismo dos corpos negros, também se vão criando novas resistências. Mas há nitidamente novas vozes e uma dinâmica a ser criada que parece irreversível. Prova de que é possível fazer a diferença quando lugares institucionais de grande representatividade para o colectivo estão dispostos a partilhar o poder, o espaço, os sentidos e os imaginários, envolvendo de forma muito concreta quem por norma não acede a eles.

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