«Quando morre uma figura pública, os comentadores decentes vivem sempre o dilema de como serem justos sem serem insensíveis. Até por saberem que os que partem deixam familiares e amigos que sofrem com as críticas a quem já não se pode defender. Mas este texto não é apenas sobre José Eduardo dos Santos. É sobre o que lhe é prévio e lhe sobrevive.
José Eduardo dos Santos foi escolhido como sucessor de Agostinho Neto porque parecia ser a escolha menos definitiva e o mais fraco e fácil de incluenciar. Não reforçou o poder pela força do revolucionário ou pela visão do líder, mas através da compra da elite do MPLA, movimento de inspiração socialista que hoje não é mais do que uma plataforma de negócios, distribuindo a riqueza pela outrora desavinda elite do partido.
Conseguiu, depois 27 anos de guerra e meio milhão de mortos, a paz. É verdade. Com a paz, construiu uma nação onde, apesar das imensas riquezas, mais de metade dos angolanos sobrevive com menos de 1,90 dólares por dia e onde permanecem das piores esperanças médias de vida e mortalidades infantis do mundo. A oportunidade falhada de construir uma democracia resume-se no facto dele próprio nunca ter sido eleito nominalmente presidente – a segunda volta das eleições nunca se realizou e, para não correr riscos desnecessários, José Eduardo dos Santos mudou a Constituição para que a eleição deixasse de ser direta. Depois da exibição pública da morte de Savimbi, também comprou a UNITA e reforçou assim o poder do MPLA. Foi e continuará a ser dentro dele que as lutas pelo poder se fazem.
Depois da queda do muro de Berlim, afastou os poucos a quem a ideologia ainda dizia alguma coisa e instituiu uma cleptocracia de estilo capitalista como sistema económico. Não houve qualquer reflexão política na mudança ideológica do MPLA (que deixou de ser dos “trabalhadores”), houve puro oportunismo de uma elite que tratava de si própria. O CEO-ditador, principal acionista de Angola, adaptou-se ao mercado. Acumulando o estatuto de dirigentes partidários, militares e empresários, muitos dos que chegaram ao poder como libertadores iriam construir a nova classe dominante de Angola. À cabeça do roubo pornográfico, os herdeiros mimados do presidente. Com o aparelho repressivo do Estado, que nunca deixou de recorrer ao assassinato, tortura e prisão, ao serviço desta nova casta de milionários.
Julgar que em 50 anos de independência se vencem 500 de colonialismo, delapidação, opressão e subdesenvolvimento é o conforto dos ex-colonos. Que, no nosso caso, vivem das memórias forjadas pelo seu próprio privilégio. Outra das características da desigualdade, que no colonialismo tem a marca acrescida da discriminação racial, é que a parte privilegiada julga saber muito sobre o país onde vive, mas ignora os sentimentos, as condições de vida e as aspirações da maioria que colonizava. E por isso os processos de descolonização são, logo à partida, tão traumáticos para o colonizador. Ele não compreende o que não pode compreender. Porque, se pudesse, a sua revolta – e houve brancos que se revoltaram – teria vindo com a consciência da realidade.
O colonialismo de séculos não morre em décadas. Não morre nas relações internacionais. Aquilo a que chamamos neocolonialismo não é mais do que o prolongamento de dominação dos que aproveitam a vantagem da exploração do passado para a continuar. O colonialismo não acaba com a independência de um país. Podem mudar os colonos, mas não muda a convicção de que recursos e a soberania não pertencem aos povos que vivem nos territórios coloniais. É impossível compreender os movimentos nacionalistas da América Latina sem compreender que, dois séculos depois de Bolívar, estes povos ainda lutam contra o colonialismo do Norte.
Em África, o colonialismo deixou marcas especialmente difíceis de ultrapassar, seja pelo legado da escravatura, seja por fronteiras desenhadas para o capricho dos interesses coloniais, seja pela criação de instituições sem qualquer relação com as realidades sociais e culturais dos povos, que arrogantemente consideramos universais.
Mas o colonialismo também perdura como cultura económica e social interna às nações. Nuns casos, copiaram o modelo capitalista ocidental, noutros o modelo soviético ocidental, em quase todos uma nova elite de libertadores substituiu a elite colonial e, sem realmente garantir a autodeterminação do seu povo, perpetuou as relações coloniais de poder. Com uma economia extrativista que não garante desenvolvimento e soberania. E com a construção de uma elite "colonial" que, concentrando toda a riqueza, se isola do povo. Tiveram nos mestres coloniais o seu modelo. E, como tantas vezes acontece – veja-se Israel –, o oprimido mimetiza o opressor quando muda de lugar. Porque aquelas são as relações de poder em que foi formado.
Que não haja equívocos: celebro a descolonização e os que dizem que foi “mal feita” parecem acreditar que, apesar de ter acontecido tão fora de tempo, ainda era nosso direito determinar como se faria. É sempre preferível que os povos cometam os seus próprios erros, combatam as suas próprias elites. Recuso qualquer paternalismo. Mas o colonialismo, anterior e posterior à independência (é impossível ignorar como EUA, URSS, regime sul africano do apartheid e Cuba usaram a guerra civil como uma guerra por procuração) é a base da tragédia angolana.
Numa entrevista à SIC, José Eduardo dos Santos, socorrendo-se das suas longínquas memórias marxistas, disse que Angola vivia a fase da acumulação primitiva de capital. Uma forma sofisticada de dizer que as suas futuramente respeitáveis elites capitalistas tratavam do saque do seu povo para o serem. E que ele e a sua família não podiam deixar de participar na construção, já não do “homem movo”, que Zeca Afonso julgava ter vindo da mata angolana, mas da classe de "novos colonos". A nossa suposta relação de “amizade” com Angola passou, no essencial, por termos, como antiga potência colonial, a função de recetores do roubo.
Mas nem tudo são más notícias. Os pequenos focos de rebelião de jovens urbanos sem filiação partidária ou a transição pacífica, apesar de crispada (como se vê na polémica em torno do funeral), para um sucessor que não teve de recorrer aos velhos golpes militares são a notícia que não tem notícia: depois de séculos de colonialismo, a descolonização é um processo, não é um momento. Na vida dos angolanos e nas nossas cabeças ocidentais.»
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