12.7.22

É fazer as contas

 


«António, chamemos-lhe assim, recebe o salário mínimo nacional: 705 euros. Desconta, como todos nós, para a Segurança Social. No caso dele, 77,55 euros por mês. O valor líquido mensal é de 625 euros. António é licenciado, em marketing. Trabalha como vigilante numa daquelas empresas a que, erradamente, chamamos de "segurança". Faz o turno da noite, da meia-noite às oito da manhã. Quando "tem sorte", fica com o horário da tarde, das 16.00 à meia-noite. Como entra à meia-noite, tem de ter carro próprio.

Os transportes públicos, ainda que estivessem integrados, e conjugados, não lhe cobrem o horário. O carro, tem 15 anos, comprado em segunda mão. Paga, por mês, 150 euros de empréstimo. De cada vez que vai, agora, encher o depósito, são cerca de 100 euros. Cinquenta litros vezes dois euros. Quase um sexto do salário é para atestar. Como tem de abastecer duas vezes por mês, são 200 euros. Por mês. Mais os 150 euros da prestação. (…) Paga renda. Fora da cidade, onde conseguiu uma casa por 200 euros. Aliás, um "pequeno T1", como diz a canção. António, só em despesas fixas, só para ter onde dormir e forma de chegar ao trabalho despende 550 euros. Recebe 625.

António tem de conseguir comer, ter luz e água em casa, gás no fogão, telefone e televisão com o que lhe sobra - 75 euros mensais. Dois euros e pouco por dia.

Como recebe mais de 540 euros por mês, António vive (?) acima do limiar da pobreza. Não conta, portanto, para as estatísticas com que governos e oposições, patrões e sindicatos, se debatem no Parlamento e na Concertação Social. Tem casa, trabalho, carro. O Estado, magnânimo, dispensa-o de pagar IRS. É, portanto, um cidadão bem na vida, já que é proprietário de um bem móvel. Com o que lhe sobra depois de pagas as despesas fixas com a casa e o carro - recordo, 75 euros - ou tem água e luz, ou come. António gostava de ser pai. Gostava de ter um carro elétrico, porque a energia é mais barata que o combustível e ele preocupa-se com o ambiente. Gostava de poder viajar, ir a um restaurante, nem, que fosse uma vez por mês. Comprar um livro, ver um concerto ou ir a um festival de música. Ou ir ao teatro, ao cinema, ao museu. A vida de António resume-se a ir de casa para o trabalho, do trabalho para casa. E a fazer contas. Contas de subtrair. É certo que tem um contrato de trabalho e recebe 14 salários e não doze. Esse dinheiro "a mais", generosamente acordado na Concertação Social, serve para pagar as contas já citadas - revisão, pneus, óleo, portagens e outras avarias inesperadas. Para sermos corretos, os 75 euros que lhe sobram, a juntar a cerca de 1300 de dois meses extra, chegam aos dois mil cento e cinquenta euros... por ano. Não chega a 200 euros por mês.

É fazer as contas.

António já passou dos trinta. Quase todas s noites, sai de casa depois das 23.00, chega ao trabalho pouco antes da meia-noite. Pelas nove da manhã está de regresso a casa e vai dormir. Acorda a meio da tarde. Come uma refeição, simples e em casa. E espera pelas onze da noite para ir, outra vez, de olho aberto, vigiar um escritório vazio. "Tem sorte". Não apanha chuva, nem sol, é um bom "posto", aquele no escritório. Podia estar numa fábrica e ter de fazer rondas no exterior, com o calor do verão e o frio e chuva do inverno. Podia estar numa obra, a evitar que alguém roubasse máquinas e materiais de construção. Podia estar numa estação de metro a lidar com passageiros fora de horas, sem-abrigo, bêbados e meliantes. Nada disso. Está "quentinho", o escritório tem ar condicionado, nunca acontece nada de noite. Ele e o telemóvel, com o wi-fi do escritório ligado, passam a noite juntos. Como tem tempo, António é bem informado. Lê muito, sabe o que se passa em Portugal e no mundo. Consegue discutir política, tecnologia, filosofia, música e cinema. Mas não tem com quem. Os amigos têm "horários normais" e António, que gostava de ter um filho, uma família, uma casa com mais que um quarto, um carro elétrico, jantar fora ou sair à noite, pelo menos de vez em quando, fica em casa.

A fazer contas.

N. do A.
António é uma personagem de ficção. Mas, atenção, qualquer semelhança com a realidade de Portugal em 2022, não é mera coincidência.»

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