12.2.24

O 25 de abril não chegou à justiça

 


«Faço um intervalo na análise da campanha eleitoral, momento central do que construímos a partir do 25 de abril, para assinalar um insulto à liberdade que também conquistámos nesse dia. De nada serve apontar o dedo a políticos que desrespeitam, em palavras e propostas, os fundamentos do Estado de Direito Democrático, se ficamos calados quando esses fundamentos são atacados, em atos, por aqueles que os têm de defender.

Serei dos últimos suspeitos de qualquer simpatia por aqueles que fazem parte do polvo da Madeira, onde a promiscuidade entre o partido quase único e os negócios se mistura com a perseguição à oposição e à liberdade de imprensa. Denuncio-os há décadas, o que me valeu sucessivos processos judiciais do poder jardinista, de que esta gente é um decadente despojo. Mas isso não faz recuar a minha indignação perante o abuso de poder que representa a detenção, para realizar um interrogatório, do ex-autarca Pedro Calado e dos empresários Avelino Farinha e Custódio Correia, por 19 dias (desde 24 de janeiro), antes de qualquer decisão de um juiz sobre as medidas de coação a aplicar.

Estes três cidadãos em pleno gozo dos seus direitos não estão detidos porque um juiz tenha verificado as condições para a aplicação da prisão preventiva. Isso é o que se espera que seja decidido, provavelmente quarta-feira (21 dias de detenção), porque a liberdade teve direito a tolerância de ponto. Estão detidos como qualquer um de nós poderia estar, se tivesse de ser ouvido por um juiz. Estão privados da sua liberdade muito para lá do que a lei pretende para uma detenção. Estão, com base numa leitura abusiva de uma lei demasiado vaga, sequestrados pelo Estado.

As celas da PJ, onde ficarão enclausurados por três semanas, são pequenas e não permitem visitas ou passeios. Porque são pensadas para dois ou três dias, tempo aceitável de detenção, em casos excepcionais – o normal deveria ser a liberdade, até se decidirem as medidas de coação, apresentando-se voluntariamente a interrogatório.

Se as recorrentes detenções inúteis, em casos mediáticos, é uma forma de reforçar a imagem pública de culpabilidade (tal como o espetáculo de transportar Pedro Calado algemado, para Lisboa), estas detenções muito prolongadas pretendem quebrar o arguido nos interrogatórios. Uma técnica digna de ditaduras que, ainda por cima, acaba por condicionar a escolha das medidas de coação: como pode, depois disto, não decidir a prisão preventiva, sem um pedido de desculpas?

O Conselho Superior da Magistratura (CSM) disse, há 12 dias, que estava “preocupado” com a demora nos primeiros interrogatórios judiciais e admitiu estudar “soluções práticas” para defender o direito constitucional dos arguidos, sugerindo mudanças na lei. Como afirmou o advogado de Pedro Calado, Paulo Sá e Cunha, se o CSM estava preocupado não precisaria de atirar os direitos destes cidadãos concretos para as calendas. Bastaria pôr mais juízes de instrução a ouvi-los. Perante isto, espero que este caso chegue à justiça europeia e que o Estado português seja, mais uma vez, punido.

O que assistimos, em casos mediáticos como estes, não é exatamente igual ao que se passa com o cidadão comum. Há coisas mais graves, que resultam do exibicionismo justicialista, outras menos, por haver mais escrutínio. Mas é a mesma cultura que explica que um dos países mais seguros do mundo tenha a média mais alta de duração das penas de prisão da Europa (mais do dobro), aparecendo as degradantes condições dos seus estabelecimentos prisionais em sucessivos relatórios internacionais. O 25 de abril nunca chegou à justiça. E isso ajuda a explicar porque se tornou tão permeável ao populismo judicial.

A campanha e os debates têm passado ao lado deste tema, o que não deixa de ser caricato, quando as eleições acontecem por causa de um caso judicial. Todos parecem levar à letra a frase que António Costa foi repetindo (até lhe tocar): à justiça o que é da justiça, à política o que é da política. Os políticos parecem achar que a sua função se resume à mera gestão administrativa da máquina judicial. Como se direitos, liberdades e garantias; organização e autonomia do Ministério Público; e instrumentos de combate à corrupção que equilibrem eficácia e direitos (têm faltado as duas coisas) não tivessem de ser tratados pelos eleitos. Têm medo que pareça que se estão a proteger. Ou de serem alvo da aliança entre jornalismo tabloide e o justicialismo de alguns procuradores. Têm medo de defender os valores democráticos.

Estes cidadãos detidos representam tudo o que combato na ilha onde estão boa parte das minhas origens. E, na indignação, até faço coro com Alberto João Jardim, o homem que usou e abusou da justiça para perseguir adversários e jornalistas, eu incluído. Não me incomoda. A defesa do Estado de Direito Democrático começa na defesa dos direitos dos nossos adversários. É uma vergonha que Pedro Calado, Avelino Farinha e Custódio Correia estejam detidos, sem uma decisão de um juiz sobre as medidas de coação, há cerca de 20 dias. Como canta Sérgio Godinho, “a corda dum outro serve-me no pé, nos dois punhos, nas mãos, no pescoço”. Sou eu que estou detido. Somos nós. Enquanto não pensarmos assim o 25 de abril não se cumpriu.»

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