16.2.24

O mundo cheira perigosamente a pólvora

 


«A Conferência de Segurança de Munique, um acontecimento anual que agora celebra a sua 60.ª edição, começa hoje e decorre até domingo. Como se tornou hábito, é uma reunião de alto nível. Desta vez, contará com a participação de cerca de 50 Chefes de Estado e de Governo, mais uma centena de ministros e um bom número de líderes de organizações internacionais, de académicos, de pensadores e de jornalistas de relevo internacional.

O relatório que serve de base à conferência deste ano faz um diagnóstico dos principais conflitos em curso e, em resumo, sugere duas conclusões. Primeiro, a competição geopolítica continua a agravar-se, atingindo agora um nível de intensidade e de complexidade sem precedentes desde a criação das Nações Unidas. Segundo, o restabelecimento da cooperação internacional deve ser visto como uma prioridade absoluta. Só assim será possível resolver os desafios mais perigosos, que na realidade não conhecem fronteiras e têm um impacto que não pode ser ignorado. É uma recomendação positiva, num relatório que é, na sua essência, pessimista.

Ao refletir sobre 2024, os relatores chamam sobretudo a atenção para os riscos crescentes em quatro regiões do globo. Dizem-nos que a cena internacional tem mais fogos que bombeiros, que há um acumular de crises graves por resolver e um sistema internacional que deixou de ser respeitado. É uma interrogação clara: em vez de ganharmos todos, preferimos todos perder?

Uma dessas regiões é o leste da Europa. A visão geopolítica que prevalece no Kremlin é uma ameaça que deve ser levada a sério. Consiste numa arrogância e agressividade crescentes, baseadas nas práticas antigas de primeiro inventar conflitos com os vizinhos olhados como rivais, e depois procurar resolvê-los à espadeirada. A minha leitura desta região é conhecida: ou a Rússia se retira e reconhece a soberania da Ucrânia, ou o que agora ocorre nesse país acabará por propagar-se a outros da região. Uma crise desse género traria imensos problemas à unidade da NATO e dos grandes países do mundo ocidental. Em contextos democráticos, estas alianças são mais frágeis do que dão a entender.

No Médio Oriente, que é um barril de pólvora. É uma região de grandes fraturas, onde à xenofobia e à absurdidade das decisões tomadas no século XX, se acrescentam ódios culturais e religiosos, e uma multiplicidade de fronteiras que não respeitam as identidades históricas e dão lugar a nações sem homogeneidade e sem recursos, para além do petróleo e do gás.

O que se convencionou chamar de Indo-Pacífico é outra área problemática. Exige uma atenção crescente, por poder ser o teatro de um conflito de grandes proporções à volta da questão de Taiwan e não só. Xi Jinping acaba de ser reconduzido pela terceira vez como líder do partido único e como Presidente da China, para novos mandatos de cinco anos. Terá, no termo desses mandatos, 74 anos feitos e ninguém sabe se existirão condições para ser reeleito de novo. Ora, na minha opinião, Xi quer ficar na história como o líder que conseguiu subjugar a rebelião de Taiwan. Se essa for de facto a sua ambição máxima, é muito provável que a ação militar contra Taiwan aconteça antes de 2027. E se Trump estiver na Casa Branca, distraído a perseguir os seus adversários internos, a começar pela família Biden, Xi poderá concluir que chegou o momento de avançar e inscrever o seu nome no topo da lista dos heróis da China comunista.

O Sahel forma a quarta região de profunda insegurança. Neste momento, o rol de países absolutamente inseguros inclui o Burkina Faso, o Mali e o Níger. Também deve englobar o Sudão, mergulhado que está numa guerra civil sem dó nem piedade e numa crise humanitária de proporções inimagináveis. Mas o Sudão tem sido excluído dos títulos dos media, de uma maneira inaceitável. As crises no Sahel têm todas as condições para se alastrarem, como já acontece em larga escala na Nigéria e agora no Senegal, por motivo da confusão política criada pelo presidente. No mesmo Senegal que sempre fora considerado como um exemplo de estabilidade e de democracia.

Três outros grandes temas são igualmente discutidos no relatório deste ano: as crescentes disparidades e rivalidades económicas entre diversos blocos do globo, incluindo no que respeita ao que pode acontecer com o desenvolvimento dos BRICS; as consequências das alterações climáticas sobre as relações internacionais, incluindo as migrações; e o impacto da revolução tecnológica e digital.

O relatório descreve um mundo a evoluir num sentido preocupante. E ficaria ainda pior se fosse reeleito em novembro o espectro que vagueia pelos corredores de Munique, silenciosamente, pois ninguém gosta de falar de maus espíritos. Mas novembro ainda vem muito longe e até lá tudo pode acontecer.»

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