«Quem olhar para Portugal, apenas no plano da política orçamental e financeira do Estado, até fica com a impressão de que 2023 foi um ano que correu bem. As contas públicas fecham com um excedente orçamental de 0,8%, estando previsto que será de 0,2% em 2024. Depois do choque de uma crise inflacionária, a inflação baixou para 1,6% em Novembro, prevendo-se que seja, em média, de 2,9% para o ano. A dívida pública baixou para 103% do PIB este ano, devendo ficar em 98,9% do PIB em 2024. Isto quando o desemprego se mantém na casa dos 6% e o emprego cresceu a níveis inéditos. Isto, friso, depois de uma crise inflacionária nascida com a pandemia de covid-19 e muitíssimo agravada com a guerra provocada pela invasão da Ucrânia pela Rússia.
Mas, de repente, tudo parece estar diferente na política portuguesa. O ano político, que começou assente na estabilidade de uma maioria absoluta, termina com a certeza de que haverá eleições legislativas antecipadas a 10 de Março, assim como de que, mesmo que o PS venha a ganhar nas urnas, o seu líder é agora Pedro Nuno Santos e não António Costa, após o primeiro-ministro em gestão se ter demitido, em 7 de Novembro, depois de ter sido divulgado, em comunicado do gabinete da Procuradoria-Geral da República, que estava a ser investigado no âmbito da Operação Influencer.
É certo que a demissão de António Costa não aconteceu apenas por causa do comunicado da Procuradoria-Geral da República. A investigação tem como arguido o seu ex-chefe de gabinete Vítor Escária e foram feitas buscas, na residência oficial, à sala do chefe de gabinete, cargo que está no centro do poder governamental do primeiro-ministro. Para já nem falar dos 78 mil euros em notas que foram apreendidas pelo Ministério Público na sala do chefe de gabinete, em envelopes dentro de livros e caixas de vinho.
Foi um final de mandato de primeiro-ministro inédito, depois de António Costa estar já no seu terceiro Governo e ao fim de oito anos. Mas se olharmos para o filme do ano político, salta aos olhos o clima de instabilidade governativa que caracterizou o ano, preenchido com demissões de membros do Governo e eivado de polémicas. Para se ser exacto, aliás, os terramotos governativos começaram a 10 de Novembro de 2022, com a demissão do secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, Miguel Alves, acusado de crime de prevaricação, enquanto presidente da Câmara de Caminha.
A 24 de Dezembro, o Correio da Manhã noticia que a então secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis, recebera uma indemnização de meio milhão de euros, quando deixou de ser administradora da TAP, o que levou a que o ministro das Finanças, Fernando Medina, a demitisse a 27 de Dezembro. A polémica que este caso provocou foi desgastando o Governo e provocou que, a 29 de Dezembro, o ministro das Infra-Estruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, se demitesse, assumindo a responsabilidade política, mas reconhecendo, cerca de três semanas depois, em comunicado, que autorizou, por Whatsapp, o pagamento da indemnização. Já a 5 de Janeiro a secretária de Estado da Agricultura, Carla Alves, demite-se, depois de o Correio da Manhã noticiar que tinhas as contas bancárias arrestadas, no âmbito de um processo judicial contra o seu marido, Américo Pereira, antigo presidente da Câmara de Vinhais.
A turbulência não acabou por aqui. Viveu-se uma guerra entre Presidente da República e o primeiro-ministro que tiveram um confronto violento em torno do caso João Galamba. Na sequência do caso da indemnização a Alexandra Reis e no âmbito das inquirições parlamentares sobre a gestão da TAP, no final de Abril, o ministro das Infra-Estruturas, João Galamba, demite um adjunto, Frederico Pinheiro. Uma demissão que envolveu agressões no ministério e os serviços secretos a irem a casa deste recuperar um computador. Perante o inusitado da situação, o Presidente da República pede a demissão de João Galamba, mas o primeiro-ministro não o demite, afrontando a vontade de Marcelo Rebelo de Sousa.
Em planos como o da gestão orçamental, António Costa foi um bom primeiro-ministro. Veja-se o elogio que lhe fez o Presidente da República, na quinta-feira, na cerimónia de cumprimentos de Natal, em Belém. Aguentou o país e apostou no Estado social e na protecção das empresas dos trabalhadores e dos cidadãos mais vulneráveis, durante a pandemia de covid-19 e desde o início da guerra na Ucrânia. Assim como teve um papel activo na União Europeia, tendo estado no centro da construção de políticas comuns.
Mas António Costa é o último primeiro-ministro e líder político português de uma estirpe, de uma tradição política que vêm da fundação da democracia portuguesa. Foi formado numa forma de fazer política que já não existe. Cresceu numa época em que não havia — nem na lei, nem na opinião pública — a exigência de transparência e o escrutínio de hoje – no bom e no mau sentido.
António Costa pertence à geração de 80, quer dizer, das pessoas que estavam na casa dos 20 anos, nessa década. Dos que já eram adolescentes em 25 de Abril de 1974. Os actuais líderes dos partidos parlamentares são das gerações de 90 e de 2000. Rui Rocha tem 53 anos, Rui Tavares tem 51 anos, Luís Montenegro tem 50 anos, Paulo Raimundo tem 47 anos, Pedro Nuno Santos tem 46 anos, Isabel de Sousa Real tem 43 anos, André Ventura tem 40 anos e Mariana Mortágua tem 37 anos. Pertencem, cresceram e amadureceram já num mundo novo. Têm outra mundividência e outra formação cultural.
Em 2023, consumou-se uma etapa da política portuguesa. O novo ciclo, que se iniciará em 10 de Março, é mais do que uma mudança de governo e de primeiro-ministro. Até porque estas novas gerações que vão liderar a política do país, cresceram, formaram-se e amadureceram num mundo em que a política é feita de forma mais epidérmica, mais de reacção, menos de reflexão, mais de negação e de rejeição, menos de diálogo e aproximação de propostas políticas para o país solidamente negociadas. Um mundo político e comunicacional dominado pela força das redes sociais, onde campeia a mentira, a histeria, o insulto, onde dominam a superficialidade, os radicalismos, os sectarismos, a agressividade, a demagogia e os populismos.
É certo que a transição geracional não põe em causa a existência de valores éticos, nem a existência de filiações ideológicas. E é também verdade que muito de negativo, do que existia na forma de fazer política tradicional, permanece hoje em dia. Incluindo os jogos de aparelhos partidários – veja-se o que a IL fez com Carla Castro. Os partidos têm os mesmos vícios ou piores. Do mesmo modo, é seguro que neste novo ciclo não haverá mais democracia. Mas muito vai ter de mudar para que a política reganhe a confiança das pessoas. É, de facto, preciso uma nova forma de fazer política, com outra exigência, outra transparência, outro rigor ético – o que não significa justicialismo, nem moralismo, bem pelo contrário. Cabe à nova geração de dirigentes políticos começar essa tarefa.»
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