19.12.23

Três dias sem migrantes em Portugal

 


«João acordou e foi tomar o pequeno-almoço na pastelaria de costume. Apenas uma pessoa a atender, um caos. Decidiu não esperar. A rua estava estranha. Algo se passava. Foi olhar as notícias: todos os migrantes de fora da Europa decidiram iniciar uma greve de três dias em protesto contra a crescente xenofobia em Portugal. Na TV, uma brasileira resumiu: "Estamos fartos de ouvir "volta p"ra tua terra", que não temos sangue puro, que estamos aqui para destruir o país. Não vamos voltar p"ra nossa terra, só vamos mostrar o que aconteceria se todos nós, que tanto trabalhamos, fossemos embora como alguns portugueses querem."

João pensou que estavam a exagerar, mas OK. Não se vai passar nada, Portugal não sobrevive apenas com o trabalho dos migrantes. Ao chegar ao trabalho, o assunto não era outro e faltavam muitos colegas. Da casa de banho, ouvia-se um alvoroço. Estava suja, sem papel higiénico e cheirava mal. O escritório também estava sujo e os caixotes de lixo cheios. Claro, as senhoras da limpeza, todas migrantes, iam às 5.00 da madrugada limpar tudo. Tentaram reclamar com os chefes, mas eles eram brasileiros!

As notícias repercutiam a paralisação. Registavam-se constrangimentos por todo lado. Faltavam motoristas, chamar um TVDE era quase impossível, os táxis disputados. Nas creches e escolas não havia funcionárias para cozinhar. O problema de limpeza era geral nas empresas. Alguns funcionários foram procurar esfregonas para dar um "jeitinho", mesmo contrariados, achavam que não era serviço pra europeus. No aeroporto, o caos era muito maior que o habitual, sem controladores de tráfego, responsáveis pelas bagagens e outros profissionais. Os turistas não percebiam nada do que se passava.

Os restaurantes anunciavam que não abririam para o almoço por não terem pessoas na cozinha, na sala e mesmo estafetas para entregas. João levava sempre o próprio almoço. Não precisava de restaurantes, nem de migrantes, pensou. Ao sair, foi a pé até o supermercado. As prateleiras estavam vazias com a falta dos repositores. As frutas e os legumes estavam escassos, assim como a carnes e o peixe. Comprou o que conseguiu e foi enfrentar a fila, onde os clientes disputavam as caixas automáticas e as poucas abertas operadas por portugueses.

João pensou que no dia seguinte já teriam acabado com o disparate da greve, ainda mais sem motivo, que malta folgada! Mas, pela manhã, as ruas estavam sujas e o lixo doméstico acumulava-se. Desocupados, pensou novamente. Chegou ao trabalho atrasado. Os chefes continuavam em greve, não havia como fazer teletrabalho sem autorização. A casa de banho estava ainda mais insalubre. Tudo estava pior e nas notícias não se falava noutra coisa. Aulas foram canceladas, os restaurantes continuavam fechados ou a "meio-gás". Os turistas tiveram as reservas canceladas nos hotéis e não tinham onde comer. Faziam posts nas redes sociais, indignados.

A situação nos mercados e frutarias era terrível: simplesmente não havia frutas, legumes ou hortaliças, pois são os migrantes que os colhem. As obras estavam paradas, as encomendas não chegavam. Em muitas empresas o serviço também ficou prejudicado, com panes em sistemas informáticos sem técnicos para resolver. Milhares de clientes com problemas de internet e TV Cabo não tinham assistência. Nem sequer atendiam as ligações, pois a maior parte dos operadores estava em greve. As consequências viraram notícias além-fronteiras. O mundo olhava perplexo para Portugal. O país estava caótico e sujo. Não havia cafés, bares, hotéis, atendimento ao público, construtores, motoristas, cozinheiros, trabalhadores nos aeroportos, estafetas, apanhadores de frutas ou profissionais no comércio em geral.

Surgiram apelos para que os migrantes voltassem aos postos de trabalho. O Governo começou a preocupar-se com o impacto na Segurança Social. Diante do caos, decidiram cancelar o último dia de greve. O recado estava dado: nem foram precisos três dias para perceber que, sem os milhares de migrantes, a vida em Portugal seria mais complicada. João refletiu e finalmente concordou. No dia seguinte, o chefe brasileiro estava de volta e perguntou aos colegas: "Então, ainda querem que voltemos p"ra nossa terra?"»

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