1.8.23

SNS – Finalmente ideias?

 


«Após semanas a discutir o sexo dos anjos da TAP e o espectáculo do Ministério Público, não havia propostas concretas da oposição de direita. Até que o presidente do PSD, Luís Montenegro, explicou a sua proposta para a Saúde. Fê-lo, aliás, em tom leve e ao ar livre. Vale a pena examiná-la. Voltou à proposta de o Serviço Nacional de Saúde (SNS) comprar serviços aos privados, para resolver o problema das listas de espera. Mas culminou propondo que seria interessante que todos os portugueses tivessem ADSE. Não se pode imaginar nada de menos rigoroso ou menos sério.

Óscar Gaspar, presidente da Associação dos Hospitais Privados, publicou a 5 de Julho um artigo de opinião no jornal PÚBLICO, bem articulado, onde comemora a lei Beveridge de 1948 de Inglaterra (National Health Service, baseado no Orçamento Geral do Estado), e explicou a grande diferença face ao sistema bismarquiano, na base do seguro obrigatório, concluindo pela necessidade de uma terceira via. Não concordo, mas dá para conversar. Ora são estes dois sistemas que Luís Montenegro calma e sorridentemente mistura. Estão a faltar-lhe assessores. Se a proposta é pagar aos privados através do Orçamento da Saúde (O.S.), baseia-se nas Leis de Bases da Saúde, tanto a de 1993 como a de 2019, recorrendo aos privados de forma complementar ou suplementar. Se todos passássemos a ter ADSE, esta deixava de ser para os funcionários do Estado, determinava-se a sua extinção com uma mudança radical da lei e o estabelecimento de um seguro obrigatório público, descontado nos salários, que é a base bismarquiana. Proposta mais confusa é impossível.

Também recentemente, o professor Fragata, numa entrevista de vida ao PÚBLICO, tal como outras personalidades, vieram de novo falar das questões “ideológicas” e do facto de o novo ministro não estar a resolver os problemas. Ora o novo ministro dispôs-se a dar a cara, mas está manietado por dois lados: a existência de um CEO no SNS e de uma estrutura paralisada por um novo estatuto, e um ministro das Finanças que, tal como os anteriores, autoriza ou não cada contrato. Na discussão com os sindicatos, o ministro é apenas um intermediário. Conseguiu abrir cerca de 300 vagas para médicos de Medicina Geral e Familiar, felizmente, mas cada ano haverá novo desafio. Não depende dele.

Para começo de análise, deveremos falar exactamente sobre o financiamento da Saúde. Os números que se conhecem são dos mais baixos em relação ao PIB, comparando com o resto da União Europeia. Mas não são executados. Uma parte do orçamento fica na gaveta. As dívidas acumulam-se e é difícil discutir com os fornecedores os preços de adjudicação. Os números são públicos, mas não é discutido o motivo desta ocultação.

Por outro lado, já é praticada largamente a compra de serviços a privados: análises, endoscopias, radiologia, hemodiálises, fisioterapia, que somam anualmente muitas centenas de milhares de euros. São suplementares, por não haver resposta no SNS. A linha vermelha que nunca se transpôs foi a compra pelo SNS de consultas e de internamentos às grandes instituições privadas. Nesse caso, é a ADSE que os sustenta e em muito menor parte os seguros privados. Houvesse dinheiro desbloqueado no O.S. e bem serviria para repor as 3350 camas hospitalares públicas que foram reduzidas desde 2001, à espera de melhores dias para a construção dos hospitais prometidos. Temos 3,5 camas/mil habitantes e, por exemplo, a Alemanha tem o dobro. Serviria também para reter com salários decentes os jovens médicos que, em 2019, já eram 13.000 com menos de 65 anos fora do SNS.

Para além destas nossas ineficiências ou paralisações, temos um problema a encarar de frente. Com o aumento da esperança de vida, somos o quarto país da Europa, em 38, a ter mais população com idade superior a 65 anos (22,4%). É a partir dessa idade que há mais doenças crónicas e situações agudas. É a nossa população, temos de cuidar dela.

É certo que as consequências do neoliberalismo percorrem a Europa, o que tem sido bem documentado: a Suécia bateu o recorde de mortes por covid; o ministro da Saúde da Alemanha, Karl Lanterbach, fala em “gafanhotos” para designar os novos consultórios privados de luxo que estão a abrir; na França aumentou a mortalidade infantil, sobretudo neonatal.

Resta-nos a “ideologia”. Os que dela falam referem-se evidentemente a ideologia de esquerda. Mas confundem ideologia com doutrina. As doutrinas, sobretudo religiosas, têm dogmas e a eles têm de obedecer. Quanto à ideologia de esquerda, ela caracteriza-se exactamente por olhar para a realidade, ser dinâmica e não ser essencialista. Senhores ideólogos de direita, que ao menos arranjem um conjunto de ideias, com coerência e demonstração. Para podermos conversar.»

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