5.8.23

Designadamente uma charada

 


«Esteja quem lê estas linhas em júbilo pela vinda do Papa Francisco ou a fugir do pandemónio criado por um festival desta dimensão, ou até nas duas condições em simultâneo, não lhe passará despercebido quanto os governantes adoram estes momentos. Eles suspendem o tempo, passam uma esponja sobre todas as questiúnculas e pecados, concitam o frenesim jornalístico até à exaustão, colonizam a atenção pública como se fosse o final do campeonato a durar gloriosos cinco dias. Que governo pode pedir melhor?

Acresce que havia um imbróglio na semana passada e que, assim, o seu apagamento é um dos efeitos desta anestesia geral. Nada daqueles casos de dinheiros, pagamentos a amigos ou comissões fantasma, uma coisa desta vez preocupante: o Presidente devolveu um decreto do governo sobre a carreira dos professores, que recusava aceitar as reivindicações que motivaram das maiores manifestações e greves a que o ensino assistiu nos últimos anos. A justificação de Belém era poderosa: além de “várias outras justas reclamações dos professores - como as parcialmente satisfeitas em anterior decreto-lei-, uma havia e há que era e é central no reconhecimento do seu papel cimeiro na sociedade portuguesa - a da recuperação do tempo de serviço suspenso, sacrificado pelas crises económicas vividas ao logo de muitos anos e muitos Governos”. Acrescentava ainda Marcelo que é inaceitável que professores do continente e das ilhas tenham regimes diferentes e, questão a não menosprezar, que a proposta do governo criará novas desigualdades. Há aqui um potencial de inconstitucionalidade e uma acusação de gestão danosa para a escola, tudo enroupado numa linguagem muito sintonizada com a voz dos professores. O chumbo retiniu e vieram a lume detalhes saborosos das conversas entre Marcelo e Costa no meio das suas viagens de avião, algum deles quis alimentar o suspense.

A questão em si vale uma reflexão. Qual a razão para este encarniçamento do governo contra os professores, prosseguindo aliás o que a anterior maioria absoluta do PS já desenvolvera? Qual a razão para este envergonhante mastigar de contas para impressionar o povo e o levantar contra os malvados professores, que uma vez custam 1200 milhões e outra se ficam pelos 300 milhões? Qual a razão para que o PS faça do esforço de destruição dos sindicatos de professores o alfa e o ómega da sua política para o trabalho, exibindo uma vontade de disciplinarização da função pública e do remanescente do sindicalismo nacional que pede meças a um cavaquismo atiçado? A isso o Presidente disse basta.

Disse, mas aí está o mistério, disse só durante umas horas. O governo, com a frieza florentina que o ilustra, respondeu acrescentando uma só palavra – mágica palavra – ao decreto. Onde se dizia que as suas medidas não prejudicam novas negociações, remetidas para futuras legislaturas, passou a dizer-se que tal poderia acontecer “designadamente em futuras legislaturas ”. O Presidente festejou isto como um sucesso, é “a imaginação que é preciso para dizer ao governo que há que dar lugar à esperança”. A explicação, já a compreendeu, é que se pode haver negociações – mas nada obriga a que haja, muito menos a que se chegue a uma conclusão – designadamente no futuro, é por poder haver também agora, mesmo que, mais uma vez, possa ou não assim acontecer. Há portanto uma probabilidade de haver uma negociação com uma probabilidade de se chegar a algum lado, tudo ao exclusivo sabor do governo que disse que está tudo arrumado.

O Presidente aceitou e a pergunta que então se pode fazer é esta: se foi gozado pelo governo, qual o motivo para ter recuado ou, até, se queria um compromisso destes, qual o motivo para ter chumbado inicialmente o decreto e passar por este vexame? Pois, como é cristalino, nem haverá negociação nem haverá igualização das condições dos professores do continente e ilhas. Assim, se a política é tantas vezes simulação e dissimulação, aqui tem um exemplo nítido.»

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