3.8.23

Portugal é um país de idosos, mas não é para idosos

 


«A minha sogra, de 83 anos, não quer usar bengala, para não expor a velhice. O meu pai, de 78, com uma artrose no fémur causada pela idade avançada, também prefere cambalear. Mesmo com a pele encarquilhada, o cabelo branco ralo e pés que se arrastam, os velhos não querem parecer velhos. Tentam afastar com fingimentos e medicamentos as forças da Natureza. Para eles, a madeira de mogno com que é feita a bengala pode ser a mesma do caixão.

A velhice não começa sempre na mesma idade. Para uns é quando se reformam, para outros é quando a lei determina, para a maioria é quando sucumbem à debilidade do corpo. Também pode ser quando a curiosidade acaba. Mas invariavelmente a velhice é vista como um mal necessário. Muitas sociedades, incluindo a portuguesa, têm dificuldades em lidar com marés-cheias de gente velha. E como atravessamos uma silenciosa crise demográfica, porventura a mãe de todas as crises, o nosso problema com os velhos só tem tendência a agudizar-se.

Segundo o Eurostat, Portugal é o país que envelhece a um ritmo mais acelerado no conjunto dos 27 Estados-membros da União Europeia. Atualmente, a percentagem de população idosa (+65) representa 24%, enquanto a de jovens até aos 19 anos é de apenas 18%. Em 1960 apenas 8% dos portugueses eram idosos.

Em países de matriz confucionista, o aniversário de 60 anos, correspondendo ao fim do primeiro ciclo do zodíaco e à entrada na velhice, é motivo de celebração (hwangap, na Coreia do Sul, kanreki, no Japão, huajia, na China). A partir daí, se possível, os filhos acolhem em sua casa os pais idosos, sendo dever de um filho adulto – e um dever honroso – cuidar dos seus pais. Para não haver dúvidas, em 1996 a China estabeleceu esta obrigação em lei. No extremo oposto, em algumas comunidades nómadas ou tribais, como os Chukchis, da Sibéria, ou os índios Apsáalooke, nos EUA, os velhos eram mortos ou o seu suicídio era incentivado, para facilitar a mobilidade e otimizar a distribuição de recursos.

Na Europa e na América do Norte, vincula-se o valor de um indivíduo à sua capacidade de trabalhar. Para evitarem a segregação social, no norte da Europa os velhos recebem cuidados ao domicílio, vendem as suas casas para financiarem o final da vida em lares comunitários e cresce o cohousing (pequenas “aldeias” com habitações individuais).

Em Portugal falta o afeto dos asiáticos e a indústria de cuidados de saúde sénior do resto da Europa. Avançamos com a adoção em 2022 do Estatuto do Cuidador Informal, mas há uma escassez crónica de lares legais e abundam os clandestinos. Os cuidados em casa não são acessíveis ao bolso da maioria. Falta uma política pública para a velhice.

Os velhos portugueses que agora morrem, nascidos nos anos 30 e 40, são a última geração armazenista da nossa diversidade cultural. Como um pião, são pessoas que viveram intensamente num limitadíssimo espaço físico, criando e protegendo fazeres, comeres e dizeres locais. A geração seguinte já é estandardizada. Um transmontano de 60 anos não é significativamente diferente de um beirão. A morte dos nossos velhos, um a um, representa a morte da nossa riqueza identitária

Os velhos portugueses são um património que precisa de ser classificado com os graus interesse nacional e interesse público. Com tecnologia e internet já não são um somatório de conhecimento técnico, mas ainda são um repositório de experiência ao serviço dos seus herdeiros. A história é tão linear quanto cíclica. E são eles que sentiram o tique-taque de duas guerras mundiais, uma Guerra Fria com ameaças nucleares e o inverno do fascismo. É interessante que, nas últimas legislativas, o partido de extrema-direita português foi desproporcionalmente mais votado pelos mais jovens, aqueles que não têm a memória de viver em ditadura. A maioria dos velhos votou em partidos que apoiam a democracia. São também os velhos que estão disponíveis para costurar a estabilidade familiar, cuidando dos netos e bisnetos, viabilizando a liberdade profissional e social de pais e mães. Estudos indicam que a interação entre velhos e novos é psicologicamente benéfica para ambos. Os mais velhos são pessoas mais racionais, emocionalmente estáveis e amáveis.

Muitos filhos cuidam dos pais idosos apenas para afugentarem os remorsos punitivos que sentiriam se os abandonassem. Criados, muitas vezes, com excesso de cânone e escassez de afetos, há filhos que não se sentem confortáveis em partilhar as suas casas com os seus pais. Doerá se as “lembranças encobridoras” de Freud forem acordadas. Mas a tendência é para que, no futuro, os idosos sejam mais participativos na vida das suas famílias. Nem que seja pela força da biotecnologia.

A medicina deixará de ter como objetivo curar doenças, mas preservar a saúde de seres humanos. A geração do meu filho viverá vidas de 150 anos devido aos avanços em impressão de órgãos em 3D, diagnósticos e medicamentos personalizados, edição genética (CRISPR), reprogramação epigenética, uso de senolíticos, cirurgia robótica assistida, ou medicina regenerativa. Iremos conseguir reprogramar os mecanismos genéticos, moleculares e celulares que tornam a idade o fator de risco dominante para certas doenças e condições degenerativas.

O mês passado, o meu pai ofereceu-me um pequeno dicionário do dialeto típico da aldeia beirã onde ele nasceu. Ao folheá-lo, desconhecia a maioria das palavras, mas ouvi nitidamente a voz dos meus avós, já sepultados. Para retribuir, vou-lhe enviar um artigo científico publicado também o mês passado por uma equipa de investigadores da Harvard Medical School e do Massachusetts Institute of Technology, com um novo instrumento para reverter com sucesso (não apenas desacelerar) o envelhecimento em ratos. As células nos músculos, tecidos e órgãos simplesmente rejuvenesceram. Talvez ele já não se beneficie com a descoberta, mas é a minha forma de dizer-lhe que a idade avançada pode ser uma sentença de vida. Com ou sem bengala.»

Rodrigo Tavares  
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1 comments:

Monteiro disse...

Artigo bem sentido organizado e mesmo sofrido mas podia ser muito mais embora chegue por agora.