«O ano, 2019. O local, Panamá. Decorria a Jornada Mundial da Juventude. Marcelo Rebelo de Sousa, esfusiante, não cabia em si de alegre: “Conseguimos! Conseguimos, Portugal, Lisboa. Esperávamos, desejávamos, conseguimos. Vitória.” Descontando o natural exagero na reação do católico Marcelo, a visita do Papa Francisco a Portugal na próxima semana para, entre quarta-feira e domingo, participar na Jornada Mundial da Juventude de Lisboa, é um daqueles eventos cujo impacto e significado ultrapassam em muito os domínios reservados da fé, que a cada um dizem respeito. No final do ano, quando olharmos para 2023, este terá sido seguramente um dos acontecimentos, se não o acontecimento, mais importante no nosso país.
Portugal é ainda o quinto país da União Europeia com maior percentagem de população cristã, o que naturalmente inclui católicos, ortodoxos e protestantes, embora os primeiros sejam largamente maioritários no nosso país. Dessa forma, não só não choca como é perfeitamente natural que, sem prejuízo do respeito integral pela separação entre Estado e confissões religiosas, aliás consagrada constitucionalmente, a vinda do Papa Francisco a Portugal na próxima semana para participar na Jornada Mundial da Juventude tenha a maior relevância e mereça a maior das atenções e interesse.
Para mais, a vinda do líder católico ao nosso país surge num momento de enorme desconforto, entre crentes e não crentes, com a atuação da Igreja. Depois do enorme abalo que significou a denúncia e investigação dos abusos sexuais continuados, e escondidos, no seio da instituição ao longo de anos a fio, esta visita a Portugal do Papa e as palavras e ações que possa ter neste caso merecem um olhar muito atento — como na altura se disse, o destapar do horror dos abusos e encobrimentos exige ao mesmo tempo uma atuação firme e determinada para que nada fique como dantes na instituição.
Dito isto, uma coisa é o reconhecimento da importância de um evento que reúne no nosso país mais de um milhão de pessoas durante um conjunto de dias, vindos dos mais diversos pontos do globo, para um encontro religioso, festivo e celebrativo, outra é considerarmos que as entidades públicas, do Estado central à menor das autarquias devem nesta altura criar uma espécie de ‘bolha’ em que as regras que vigoram para o resto do tempo nesta altura não contam para nada. Em particular, as regras que dizem respeito à boa utilização dos recursos, escassos, públicos de que dispomos.
Sem radicalismos, jacobinismos ou confessionalismos, sem posições barricadas, com bom senso e moderação, mas sempre com determinação, a realização de visitas ou de grandes eventos populares não eliminam a necessidade de escrutínio jornalístico sobre o que se passa.
É por isso da maior relevância que um jornal como o Expresso, que procura informar o melhor possível e dentro da maior independência os seus leitores, olhe nesta última edição do semanário antes da chegada do Papa a Portugal na quarta-feira para os dinheiros públicos que estão a ser gastos, e de que forma, na preparação do evento (e ainda há faturas das quais desconhecemos o valor final, olhe-se por exemplo para as polémicas à volta dos palcos nos últimos meses).
Todos, a começar por Francisco e a terminar no peregrino que se deslocou do mais longínquo ponto do planeta até Lisboa, são muito bem vindos. Mas isto não retira o direito de questionar o porquê da multiplicação como cogumelos dos processos de contratação direta pelo Estado, para os mais variados serviços relacionados com a Jornada, sem o recurso a um concurso público. Ou seja, a regra de contratação pública em Portugal é o concurso público. Mas quando as coisas se tornam sérias, fechamos os olhos e a regra já não vale. O que se passou no Estado central e nas principais autarquias envolvidas na Jornada, em particular nos últimos meses, é mesmo um autêntico despautério. Multiplicam-se os contratos sem concurso, três quartos do total foram já em 2023 e metade só no último mês.
Alguém entende isto?»
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