2.8.23

A agonia do Estado laico

 


«O envolvimento do Estado (Governo e autarquias) no financiamento e organização da Jornada Mundial da Juventude da Igreja católica é, provavelmente, a mais grave violação do princípio constitucional da separação do Estado e das Igrejas desde que foi institucionalizada a democracia. Por três ordens de questões.

A primeira é de moralidade social. Apesar de ninguém querer fornecer dados globais da despesa pública com este evento da Igreja católica, os números conhecidos apontam para bem mais de 80 milhões de euros. O Governo e as autarquias de Lisboa e Loures forneceram terrenos, prepararam infraestruturas, fizeram pontes, construíram palcos megalómanos, asseguraram telecomunicações, mobilizaram forças de segurança à escala nacional, arranjaram transportes, cortaram trânsitos e acessos para que a Igreja católica pudesse levar a cabo a sua majestática mobilização religiosa. De tal forma que soa estranha ao discurso desclericalizante e de justiça social do Papa Francisco.

Num país com um dos mais altos índices de desigualdade e dos mais baixos salários da União Europeia e com gravíssimos problemas de acesso à habitação ou de sustentação de serviços públicos essenciais, investir somas do erário público deste montante como privilégio cerimonial de uma crença religiosa é social e politicamente imoral. Poupem-nos às justificações deliquescentes dos idílicos jardins floridos que vão ficar, ou às mais cínicas piscando o olho às expectantes negociatas do turismo e do alojamento local. Precisamente o que se reclamaria de gasto público tamanho é que fosse aplicado no interesse geral, ou seja, que ajudasse a resolver algumas das mais urgentes prioridades que enfrenta o país. Por isso, obrigado, Bordalo II.

A segunda é uma questão de princípio e de legalidade. Ao apadrinhar financeira e politicamente a mobilização religiosa da Igreja católica, ao atribuir-lhe um tratamento que configura um enorme privilégio sustentado pelos dinheiros públicos, o Governo e as autarquias que se lhe associaram violam abertamente a natureza laica do Estado, constitucionalmente estabelecida. E com isso atentam contra o princípio democrático e também constitucional da liberdade religiosa e de crença, pois a primeira condição para ela existir é a neutralidade religiosa do Estado. Neste melancólico entardecer das democracias, parece que em Portugal se vai regressando, sem protesto de quase ninguém, aos tempos do neorregalismo funcional em matéria de relações do Estado com a Igreja católica que caracterizaram a ditadura estado-novista.

A terceira é a questão da atitude simbólica de quem nos representa. Quando o Presidente da República faz questão de misturar sistematicamente no exercício das suas funções o seu papel de chefe do Estado com o de exuberante coadjutor da hierarquia católica; quando o primeiro-ministro socialista entende, enquanto chefe do Governo e sem vislumbre de estados de alma, participar nas missas papais; quando o presidente da Câmara de Lisboa, fingindo trazer a cruz da procissão às costas, se desdobra em exteriorizações patéticas de uma devoção toda ela bafejada pelo espírito mais prosaico de caça ao voto; quando os partidos parlamentares (com as honrosas exceções do Bloco e do Livre) se acotovelam para ficarem na fila da frente das cerimónias eclesiais; perante um tão beatífico cenário de unção religiosa por parte dos que deviam ser os primeiros a respeitar e a fazer respeitar a neutralidade religiosa das instituições públicas, eu pergunto se é possível deixar de pensar que estamos, despreocupadamente, a assistir à agonia do Estado laico enquanto pilar fundamental do regime democrático.

No que me toca, sou um cidadão republicano, ateu e socialista, e consequentemente convicto defensor da liberdade de crenças e descrenças. Por isso mesmo, não concebo que os impostos pagos por todos sirvam para financiar as espaventosas cerimónias religiosas só de alguns. Mesmo que estes se considerem religião maioritária. E precisamente por isso mesmo.»

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