«Os termos da proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2023 estão razoavelmente definidos e têm povoado o debate. Entre eles contam-se os referenciais do cenário macroeconómico: crescimento, embora fraco, inflação de 4% em 2023 e de 2% nos anos seguintes, abrandamento das exportações e, principalmente, do consumo, uma certa dinâmica do investimento, manutenção de baixo desemprego. Assim como se contam o acordo assinado com as confederações patronais em matéria de evoluções salariais e de apoios às empresas.
Há duas decisões críticas que antecedem todas estas deliberações: a de “aplanar” o ano perturbador de 2022, não atendendo à inflação em curso, como se o mundo começasse em 1 de janeiro de 2023, e a de assumir aquelas estimativas de inflação sem se saber o que acontecerá se a realidade for diversa. Nisto assentaram os consensos em matéria de evolução salarial. A partir daqui, no exercício de equilíbrios que se compreende que qualquer OE tem de ser, há alguns dados fundamentais. É notório que, corretamente, se pretende proteger melhor os baixos rendimentos e as famílias mais vulneráveis. Isso faz-se através de medidas fiscais, de prestações sociais e dos salários para a função pública. Mas também é igualmente notório, especialmente neste último caso, que se descuidam estratos populacionais inapropriadamente designados “classes médias” e que, na verdade, são assalariados que só o baixo nível da remuneração média permite que se diferenciem positivamente.
As medidas fiscais de apoio, incluindo a diferenciação do IRC, assim como outros instrumentos de intervenção na economia (os da energia, justificados), tornam este OE assaz protetor das empresas. Estamos em plena intervenção do Estado na economia (que dirão os cultores do mercado?). Mas, ao mesmo tempo, os salários só formalmente são alvo de atenções. Eles ficam, de facto, num plano inclinado, escorregadio e incerto. Uma vez esquecido 2022 e estabelecidas as previsões bondosas de inflação, fazendo contas, a evolução salarial acordada levaria, é certo, a um aumento real dos salários em 2026. Tal objetivo ficaria, aliás, praticamente realizado com as projeções de acréscimo da produtividade. Mas, se levarmos em consideração a subida do nível de preços assumido pelo Governo para o ano em curso (7,1%), tal objetivo esfuma-se.
É por isto que convém pensar no seguinte: estamos, toda a gente o diz, num contexto de escassez de mão de obra e é muito razoável considerar-se que o ambiente inflacionário será sempre convulso. Assim sendo, em que se transformará o acordo sobre rendimentos, se, em vista disto e tudo somado, os aumentos salariais na economia tenderem afinal para mais de 5%? Transforma-se num acordo de limitação dos salários! Os patrões agradecerão, os trabalhadores não. Lembre-se que, sem qualquer concertação, a remuneração bruta média no fim do primeiro semestre deste ano já tinha aumentado 3,1%, em termos homólogos, segundo o INE. Porque não há no acordo uma cláusula de indexação à inflação efetiva, em vez de só à estimada?
É isto que justifica uma reflexão final. Há uma relação profunda entre estas deliberações e a democracia, a começar pela democracia económica. Estamos a cuidar bem dela? Quando para um lado fica o incerto e escorregadio e, para o outro, ficam as garantias, há um problema sério, que cedo ou tarde se revelará. Deixar de fora muita gente trará consequências. Depois da degradação da democracia económica, vem a degradação da democracia política. Quando, noutras eras, se chamou democráticos a certos capitalismos europeus foi porque se salvaguardavam estes equilíbrios. Tratava-se com igual cuidado o que se permitia ao capital, e que se julgava útil para o funcionamento saudável da economia, e o que se assegurava ao trabalho, integrando-o com pleno direito e com um lugar digno na lógica que se queria estabelecer. Cuidar destes equilíbrios agora, em vez de os deixar lá para 2025 ou 2026, quando for tarde e algo já tenha caído em cima das nossas cabeças, pode ser um enorme risco. E é seguramente um erro.»
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