17.10.22

Enquanto discutem se a sua mulher parece séria, César mente-vos

 


«O que começa com uma meia-verdade dificilmente não acaba numa grande mentira. A atualização das pensões em 2023 começou com um truque de António Costa e acabou com uma fraude política e técnica de Ana Mendes Godinho. Quando foram apresentados os aumentos de reformas, o primeiro-ministro quis passar a ideia de que, com o adiantamento dado agora e a atualização de 4,5% (em vez dos 7% ou 8% que a lei impunha, em 2023), tudo ficaria na mesma, porque uma coisa somada à outra dava o mesmo total. Enganava as pessoas, não lhes explicando que o adiantamento não era aumento, por isso não contaria para a base a partir da qual se viriam a fazer as atualizações subsequentes. Menos cerca de 250 euros no conjunto do ano de 2024 e em cada ano seguinte, em média.

A não ser que venha a deflação, esta perda será definitiva. É indiferente se a inflação é passageira – todas são, a questão é por quanto tempo – ou atípica, a base a partir da qual se farão os aumentos futuros será definitivamente mais baixa. Nas reformas, Costa corta nos custos previsíveis quase o dobro dos 600 milhões que Passos Coelho propunha e que foi uma das principais armas do PS contra o PSD, nas eleições que levaram a “geringonça” ao poder.

O Estado Social depende de um contrato de confiança. Essa confiança foi traída quando Costa fez o oposto do que disse. Em fins de julho, já em plena crise inflacionista, afirmou que não havia a mínima dúvida que iria cumprir a fórmula prevista na lei porque “as leis existem para ser cumpridas”. Isso significava, disse, “que para o ano nós vamos ter um aumento histórico das pensões (...) por termos um aumento muito significativo da inflação”.

Quando, para além de não cumprir o contrato, o governo agita, por conveniências políticas e propagandísticas de curto-prazo, o fantasma da sua insustentabilidade alimenta a insustentabilidade política do sistema. Há debates a fazer sobre o futuro do sistema de reformas. Do meu ponto de vista, sobre as fontes de financiamento, não sobre cortes das prestações ou a entrega de parte do sistema aos voláteis e insustentáveis mercados de capitais. Mas não há confiança sem mínimos de previsibilidade. E muito menos, com a mentiras descaradas.

Há três semanas a ministra do Trabalho e Segurança Social deu a conhecer um documento em que explicava que a se a lei criada por Vieira da Silva fosse cumprida o sistema de reformas perderia treze anos de vida. Os saldos negativos começariam ainda antes de 2030 e o Fundo Estabilização da Segurança Social, que serve para lidar com este tipo de variações, extinguir-se-ia em 2040.

PS e comentadores de direita, que o atacam nos escândalos simbólicos (e alguns totalmente absurdos), mas apoiam-no em decisões económicas fundamentais do governo, agarraram-se à fraude com unhas e dentes. c

Chegado o relatório do Orçamento de Estado de 2023, feito pelos serviços dos ministérios, ficamos a perceber que, para além deste nada despiciendo pormenor, o Fundo Estabilização da Segurança Social não só não se extingue em 2040 como terá, em 2060, mais dinheiro do que agora: 34 mil milhões de euros, mais oito mil milhões do que os 26 mil milhões previstos para 2023.

Estamos a falar de cálculos a longo prazo que servem apenas para perceber o impacto das medidas presentes. Mas as diferenças entre o cenário apresentado pela ministra e os atuais são de tal forma abissais (aqui e aqui) que só podemos usar um termo para descrever o seu comportamento político e técnico: fraude. Nunca esteve em causa sustentabilidade da segurança social. Como nos salários dos funcionários públicos, o governo tenta usar a inflação para conseguir reduções dos salários e pensões reais (com a ilusão de aumentos nominais), transferindo para eles parte da redução rápida da divida pública em plena crise social.

A ministra, que para além de mentir premeditadamente aos pensionistas pôs em causa, de forma consciente, a credibilidade da segurança social, não deve apenas um pedido de desculpas. Ou apresenta (inventa?) outro argumento para não cumprir a lei, ou terá de a cumprir, incorporando a atualização num aumento definitivo. Sabe que esta atualização se baseia numa mentira consciente, mas que só se vai sentir nos bolsos dos reformados em 2024. Suficiente para deixar as culpas do empobrecimento destas pessoas para quem venha depois.

Normalmente, diria que se tinha de demitir depois desta fraude política. Mas está tudo demasiado entretido com a aparência simbólica da seriedade da “mulher de Cesar” para olhar para o que Cesar faz à vida concreta das pessoas e para a seriedade com que elas são tratadas.

Tem sorte a ministra. Primeiro, porque às oposições de direita dá jeito entreterem-se com o que é acessório e deixarem passar as mentiras que permitem que seja feito o que elas próprias bem sabem que fariam. Se a ministra, por mera conveniência pontual, ajudar a vender a tese da insustentabilidade de um sistema público de reformas que elas querem privatizar, só podem agradecer. É excelente que, por mero oportunismo, prepare o ambiente político para o que a direita quer fazer por convicção.

E a ministra tem sorte pela desconcertante inconsequência e inconsistência do escrutínio feito pela comunicação social (com exceções, como o trabalho exemplar de Elisabete Miranda, aqui no Expresso), sempre excitada com a espuma dos dias e indiferente à vida de milhões de pessoas. César pode fazer o que quiser, que os olhos estão postos na aparência de virtude da sua mulher.»

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