22.10.22

Habituemo-nos àquilo a que nunca nos deveríamos habituar

 


«A guerra da Ucrânia vai-se agravar em termos militares, em termos de destruição, em termos de mortes civis. A guerra da Ucrânia não tem solução negociada. A guerra da Ucrânia vai-se alastrar em termos geográficos e nacionais. A guerra da Ucrânia vai chegar ao limiar de um conflito nuclear, não penso que o ultrapasse. Para já.

Quem não compreende isto não se prepara como deve. Nenhuma previsão realista pode deixar de ter em conta estas circunstâncias: estamos em guerra com todas as consequências económicas, sociais, militares e políticas. Não é uma questão de a desejarmos, é um facto. As acusações de belicosidade só podem ter um destinatário, Putin, e, quando não têm e misturam tudo, são pura hipocrisia.

Acho, apesar de tudo, que vários governos democráticos, incluindo o português, já o perceberam. Podem não ter tirado ainda todas as consequências, mas sabem que vamos conhecer anos, senão décadas, marcados pela guerra da Ucrânia, seja “a quente” seja “a frio”. Deixo de parte os aliados objectivos de Putin, quer na direita, quer na esquerda que, mesmo com um palavreado sobre a “paz”, a última coisa que desejam é que a Rússia perca a guerra que provocou.

Voltemos atrás às afirmações iniciais. Algumas são evidentes pelo que não vale a pena perder muito tempo com elas, a não ser para sublinhar o seu aspecto trágico. Vai haver muitos mais mortos civis, directamente por causa dos combates, mas acima de tudo porque a Rússia prossegue uma política de destruição de infra-estruturas civis e de intimidação das populações pela violência. Não é uma política única, são duas, ambas crimes de guerra, embora com uma longa história das mesmas práticas em vários conflitos na Europa, no Próximo Oriente, em África, na Ásia. Há pouca gente com as mãos limpas, os EUA, Israel, a Síria, nos Balcãs, no Cáucaso, nas Coreias. Seja como for uma coisa não justifica a outra.

A diferença no caso da Ucrânia está na dimensão de um conflito que se estende por um vasto país, com grandes cidades e concentrações populacionais. A Rússia vai incrementar esta política de destruição e ataques a civis, em relação directa com os seus fracassos no terreno militar.

A afirmação de que esta guerra não tem solução negociada é talvez a mais controversa e a que precisa de explicação. Em bom rigor, penso que nunca a teve, mas agora é mais evidente que não tem, desde que a Rússia anexou os territórios ucranianos na federação. Este é um ponto sem retorno, porque a partir da anexação não é possível haver uma paz que não seja a rendição da Ucrânia com perda do seu território nacional. Por outro lado, Putin nunca pode recuar nessa incorporação imperial, sem admitir que perdeu a guerra e que as reivindicações territoriais russas na Ucrânia, incluindo a Crimeia, na Geórgia, na Moldova, são ocupações por uma potência estrangeira. Se a paz já era difícil, depois das anexações é impossível. Quem continua a falar de “paz”, assobiando para o lado depois dos referendos fantoches e da formalização da anexação pela Federação Russa num simulacro de legalidade, de novo quer apenas a rendição da Ucrânia.

A outra afirmação inicial que pode justificar mais explicações é a do alastramento da guerra. Embora a Bielorrússia esteja na guerra desde o início, os passos dados recentemente com a criação de contingentes comuns com a Rússia e as ameaças nas regiões fronteiriças são um passo para o retorno às formas iniciais do conflito, ameaçando Kiev e a Polónia. A Geórgia, que tem parte do seu território ocupado num esquema semelhante ao que os russos desenvolveram no Donbass, e a Moldova, que tem uma “república” cisionista do outro lado do Dniestre, criada pela presença de um exército russo quando da fragmentação da URSS, podem também assistir a anexações formais, embora já o sejam de facto.

Os países bálticos também sentem o risco, em particular a Lituânia, com o enclave da antiga Prússia Oriental, agora com capital em Kaliningrado, parte da Federação Russa sem contacto geográfico e por isso dependente de acordos de circulação. A Polónia também está na linha da frente, por todas razões logísticas, militares e políticas. Cá longe, do outro lado da Europa, podemos pensar que a guerra é distante, mas para estes países está à porta e muitas vezes já com um pé na porta.

A razão por que Putin acena com um conflito nuclear vem de ele e os militares russos saberem que uma entrada da NATO no conflito, mesmo que apenas com meios convencionais, infligiria uma pesada derrota aos russos, num período de tempo muito curto. Tradicionalmente a grande vantagem que a URSS tinha no plano militar sobre a NATO era a sua enorme capacidade numa guerra terrestre de colocar vagas sobre vagas de tanques a chegarem aos portos do Atlântico em poucos dias, cortando a possibilidade de chegada a tempo ao teatro europeu dos reforços americanos. Foi esta desvantagem que justificou a colocação de mísseis nucleares tácticos na Europa, para além de muitas outras medidas de pré-posicionamento de meios. Isto, simplificando.

Ora o que aconteceu na Ucrânia foi a verificação de que o rolo compressor dos blindados russos não funcionou e mostrou enormes debilidades, o que explica a dependência russa dos mísseis e dos drones à distância e da superioridade aérea. Mas, mesmo isso, pode estar a acabar com o novo armamento que a Ucrânia está a receber.

Por isso, as ameaças de Putin ainda são um bluff, mesmo que ele diga que não são. Também penso que há racionalidade em Putin e nos seus aliados que não os impeça de perceber o que aconteceria numa guerra nuclear. Mas a trivialização da ameaça é em si mesmo muito perigosa.

Por último, há quem diga que tem mais medo da derrota de Putin do que de uma vitória ou meia vitória russa. Estão enganados: a derrota é certamente perigosa, mas não haverá paz nem fim da guerra sem essa derrota.»

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