2.2.25

Hernâni Dias e as empresas como paradigma da cultura neoliberal

 


«A primeira demissão no Governo liderado por Luís Montenegro ocorreu na terça-feira. Hernâni Dias renunciou ao lugar de secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, depois de um ensurdecedor silêncio do Governo, que passou cinco dias sem reagir, comentar ou explicar o caso e as suspeitas de conflito de interesses, em que Hernâni Dias foi implicado pela investigação feita pelos jornalistas da Prova dos Factos, da RTP.

Para ser precisa, na sexta-feira, este programa de reportagem de investigação apenas trouxe à luz do dia mais um caso em que Hernâni Dias era exposto em situação de claro conflito de interesses. Mas a divulgação pela Prova dos Factos de suspeitas em casos que envolvem este secretário de Estado remontam ao início de Novembro, e durante longos quase três meses o Governo não se preocupou em esclarecer a situação e manteve-se passivo perante a exigência de explicações que logo a primeira reportagem tornou urgente.

Os três casos em que Hernâni Dias está envolvido são diferentes. O primeiro, noticiado pela RTP, no início de Novembro, diz respeito ao seu exercício do mandato de presidente da Câmara de Bragança. A gestão deste município terá pago e tem comprovativos de facturas de cerca de 800 mil euros de obras que não terão sido feitas, no âmbito do aumento da zona industrial de Bragança.

Já a 17 de Janeiro, a Prova dos Factos divulgava que Hernâni Dias estava a ser investigado pela Procuradoria de Justiça Europeia, pela suspeita de que terá recebido contrapartidas da mesma empresa. Mais concretamente, entre 2016 e 2022, o filho de Hernâni Dias terá vivido num apartamento, no Porto, que era propriedade de um filho de um sócio da construtora que fez as obras de ampliação da zona industrial de Bragança. Neste caso, Hernâni Dias garantiu à Lusa que tinha pago renda por transferência bancária e tinha contrato de arrendamento.

E na sexta-feira dia 24 de Janeiro, foi a vez de a Prova dos Factos divulgar novas suspeitas de teor diverso e que apontam para uma situação de conflito de interesses clara. Já como secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, Hernâni Dias constituiu duas empresas na área do imobiliário, uma com a sua mulher e outra em que a primeira empresa era sócia. Isto quando o próprio Hernâni Dias, na qualidade de governante e na tutela do ministro adjunto e da Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida, estava ligado à elaboração da lei dos solos, uma legislação de que as duas empresas podem vir a beneficiar.

Com a pressão do escrutínio jornalístico, surgiu o escrutínio da oposição. BE, PCP, Chega e PS pediram explicações. Ao ruído das suspeitas, quer o ministro Manuel Castro Almeida, quer o primeiro-ministro, Luís Montenegro, mantiveram-se mudos. Na mesma terça-feira em que Hernâni Dias se demitiu, Luís Montenegro fugiu às perguntas dos jornalistas sobre o secretário de Estado, escudando-se com a desculpa de que estava a participar numa cimeira com o primeiro-ministro de Cabo Verde.

No mesmo dia, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, também não quis comentar, mas atirou o assunto para cima do primeiro-ministro, afirmando que qualquer avaliação sobre a situação era da esfera de competência de Luís Montenegro. A verdade é que o silêncio do primeiro-ministro sobre este caso se mantém, até hoje, mesmo depois da demissão.

Esta situação tem várias esferas de análise e uma delas, que não é menor, é a das consequências e a porta aberta à especulação imobiliária pelas alteração introduzidas pela lei dos solos, pelo facto de permitir que as assembleias camarárias votem alterações ao Plano Director Municipal e transformem terrenos rústicos em urbano, para neles ser construída habitação. Uma questão que foi levantada em artigos de opinião no PÚBLICO quer por Helena Roseta, quer por Manuel Carvalho.

Mas o conflito de interesses, que está patente no facto de um membro do Governo constituir empresas que podem vir a beneficiar de alterações à lei em que ele mesmo está a trabalhar, é gritante. E diz muito sobre a nova cultura que foi criada pelo domínio do neoliberalismo nas últimas décadas. Uma cultura em que a felicidade passa pelo sucesso, o sucesso passa pelo enriquecimento e o enriquecimento se conquista através de empresas. E parece fazer escola em Portugal. Isto quando manda a ética e a seriedade que um membro de um governo não deve constituir empresas, nem que seja para vender croquetes, rissóis e pastéis de bacalhau.

O padrão de comportamento que leva um governante a considerar normal constituir empresas para negociar em terrenos e construção é o mesmo que enquadra a situação que levou à demissão de António Gandra d’Almeida do cargo de director executivo do Serviço Nacional de Saúde, em 17 de Janeiro. Recordemos. Em causa esteve o facto de, enquanto director da delegação regional do Norte do Instituto Nacional de Emergência Médica, ter desempenhado funções como médico tarefeiro em hospitais públicos. Uma actividade que exerceu através de empresas de prestação de serviços médicos que constituiu com a sua mulher.

É a mesma cultura de permissividade e relativismo ético que tem crescido e dominado, nas últimas décadas. As empresas são sinónimo de sucessos e, para ter sucesso, para enriquecer, temos de ter empresas, mesmo que procedam de forma ilícita, mesmo que em situação de conflito de interesses. É o novo paradigma de sucesso da cultura neoliberal.»


0 comments: