6.2.25

Videovigilância: manter fechada uma porta sem parede à volta

 


«Há uns tempos, num debate no “Eixo do Mal”, quando foi referida a necessidade de videovigilância na Rua do Benformoso, acabei por assentir, sem debate, recordando que também existe no Bairro Alto. Devo dizer que o disse sem pensar, esquecendo os anos em que me opus a este Big Brother. Este texto não serve para desdizer o que disse. Serve para refletir o que mudou para dizer o que disse. A insegurança é maior nas ruas do que era na altura? Não, como já expliquei aqui. É menor.

Temia que se entregasse ao Estado um poder que, caso viesse a ser autoritário, fosse usado para perseguir cidadãos por muitas razões que ultrapassam a segurança. Há razões para temer menos esse risco? Pelo contrário, nunca esse perigo foi tão real, nos últimos 50 anos. As forças antidemocráticas cresceram em Portugal e na Europa e o seu discurso fortemente securitário ganha terreno na sociedade e na política.

Continuamos a entregar cada vez mais instrumentos de vigilância a um Estado cada vez mais próximo do risco de deriva autoritária. Uma câmara em cada esquina seria o sonho da Stasi. Se antes dizia que não podíamos pensar que viveríamos sempre em democracia, agora, que tenho poucas dúvidas que a democracia com as garantias que lhe conhecemos está condenada, a minha posição devia ser ainda mais firme, não menos.

Outro dia, ao discutir este tema com um amigo, acabei por assumir o que mudou: já interiorizei a derrota. Ao ponto de me parecer insensato o que antes era óbvio, apesar das razões para pôr câmaras nas ruas terem diminuído e os temores de as colocar terem aumentado.

Dizia o meu amigo que, ainda assim, estávamos a abrir a porta a enormes perigos. Foi na resposta sincera que lhe dei que percebi porque é que a minha posição, apesar de aparentemente ilógica, fazia todo o sentido: ele está a querer manter fechada uma porta onde já nem sequer há parede. O telemóvel que tem no bolso é um localizador, o micro desse telemóvel um espião, as redes sociais o Big Brother global em que nem Orwell poderia sonhar, os programas IA onde despejamos informação guardarão tudo sobre nós e os drones farão de forma muito mais intrusiva o que as câmaras agora fazem.

Basta ver que tudo o que os Estados europeus se preparam para aceitar na utilização da inteligência artificial para a segurança, investigado por Paulo Pena e a equipa do Investigate Europe, para perceber que a luta contra a videovigilância não seria mais do que uma trincheira do século XX em pleno século XXI.

Não tenho dúvidas que, se se fizesse uma sondagem à videovigilância, o apoio seria esmagador. A privacidade, que nunca foi um valor estimado (“quem não deve não teme”, diz o povo que durante séculos teve de entregar o seu corpo e a sua vida ao patrão enquanto partilhava casas minúsculas com a família), não é importante para a esmagadora maioria das pessoas. E, no entanto, não deveria ser um valor que, no que é essencial, dependesse da vontade maioritária. É por isso que as lutas se têm de fazer quando se abrem as primeiras portas com discursos virtuosos.

As lutas do século XXI são outras, mais recuadas ou avançadas, conforme o ponto de vista: a regulação da Inteligência Artificial ou da utilização de dados pelas plataformas, por exemplo. Às antigas voltaremos no dia em que esta vigilância totalitária e privada a que nos entregámos der tão mau resultado que quereremos rever tudo o que autorizámos. Se esse dia chegar.

Mudei de posição? Não. Mais do que há umas décadas, sei o Estado virá a usar estas câmaras para me vigiar. Que deva o que dever, tenho tudo para temer. O problema é saber que a oligarquia do “capitalismo da vigilância” já me vigia muitíssimo para lá do que uma câmara pode captar. Quero reconstruir a parede. Sem ela, é indiferente se a porta está aberta ou fechada.»


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