20.3.24

Zangados, demasiado zangados

 


«Andamos zangados. Zangados com os políticos, com as organizações, com o trabalho, com os vizinhos do lado e com os imigrantes – que, entretanto, já são vizinhos do lado. Até com os factos nos zangamos, porque não confirmam as nossas ideias feitas. Daí fugirmos para as redes sociais para sobretudo dizer mal de tudo – onde aqueles que cada vez mais reinam nos seguem os passos e indicam o caminho que querem que sigamos. E ali, no seu interior tudo é emoção: likes, ira, gargalhadas ou “adoro”.

Para sobreviverem, os meios de comunicação social acabam, por vezes, a fazer o mesmo: a entreter-nos, com interpretações exaustivas de informação que, essa sim e não as interpretações, é contabilizada ao segundo – e recordo-me, para o efeito, dos debates políticos. Chegamos ao dia da reflexão que precede o voto e raciocinamos com parangonas, sem justificação sólida, liquidificando as nossas conclusões. O que de mais importante há para a nossa vida não é sequer merecedor de tempo na economia devoradora da atenção. Bastam-nos os títulos dos jornais. O resto, dizemos, é “mais do mesmo”.

No meio de tudo isto, com informação compreensivelmente empobrecida e toda a liberdade para desinformadamente destilar veneno, “publicamos” a toda a hora. Falta-nos um virtuoso meio-termo na gestão do que temos à mão, capaz de evitar o radicalismo. Alimentamos assim um novo cenário. Existimos nós e do outro lado o “sistema”. Que é corrupto e nós impolutos. Tornámo-nos insolitamente santos morais.

Queremos tudo porque supostamente nada temos. Queremos um novo 25 de Abril. Queremos equivaler o 25 de Novembro ao 25 de Abril. Queremos fazer dos períodos de terror que se seguiram às revoluções – e penso não apenas em Portugal, mas até nos excessos pós-Revolução Francesa –, um terror maior do que aquele que lhes preexistia. Queremos revisitar permanentemente a História, como se aqueles que no momento a registaram tivessem em mente mentir aos que se seguem. E os negacionistas são os outros.

Falamos de desobediência civil como se ela não fosse uma figura-limite na contestação. Como se ela não tivesse consequências a médio prazo, até para a própria democracia, que pode resvalar para uma anarquia. Queremos novos heróis, mas, por favor, seja um qualquer outro que não eu o mártir – e nem nos apercebemos que um colectivo pode ser tanto ou mais esmagador porque inviabiliza o dia-a-dia de todos.

Quem luta, lembrando que “a luta continua”, porque de facto “quem adormece em democracia, acorda em ditadura”, é imediatamente rotulado como já parte do dito “sistema”. Dividimo-nos em movimentos esparsos e depois reclamamos dos outros, que sempre foram unidade, essa unidade que sempre foram. O individualismo reina, e por isso dividimo-nos, dizendo que é o poder e somente ele quem “divide para reinar”. Nem nos apercebemos que, não obstante a nossa boa vontade para resolver problemas, não nos integramos desinteressadamente. Confiando, simplesmente. Porque, pensamos, os que já cá andam nada sabem e nada fazem. Somos nós os donos da verdade. E santos morais, uma vez mais.

Emergem, entretanto, os vampiros da zanga. Que a alimentam e se riem à distância para depois a sugarem, criando exércitos que nos imporão uma obediência brutal – e aí sim, retornarão as figuras-limite da luta, como a de Salgueiro Maia que nos lembrou que “às vezes – e permito-me sublinhar este ‘às vezes’ – é preciso desobedecer”.

Parece, pois, que nada acontece por acaso. Estamos muito provavelmente a perder a razão. E se a perdemos é porque já a tivemos. Precisamos de aprender a viver com parte do que já temos, porque nem tudo está mal. Precisamos de nos zangar menos e aceitar mais, lutando contra factos de injustiça e não por preconceitos que a distorcem. Precisamos de lembrar aqueles que hoje escolhem o radicalismo que amanhã estarão eles na guerra – e já se fala novamente no serviço militar obrigatório. Não, não estamos no final da História, como Fukuyama julgou depois da suposta unificação do mundo com a queda do Muro de Berlim. Pelo contrário. Estamos a falhar como civilização.»

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