«Ao contrário do que por aí se diz, nem sempre o descontentamento desagua em formas de protesto, seja em voto ou manifestações de rua. Na verdade, o descontentamento só se transforma em protesto se alguém o politizar. É sempre necessário que alguém avance e seja capaz de o descrever, de identificar causas e culpados, propor soluções e mudanças, liderar a forma como o protesto irrompe. Por isso, e porque a politização não é toda igual, a questão central da política é sempre quem é que politiza o sentimento de mal-estar que se pressente na sociedade.
A meio da década passada era possível desenhar uma geografia do protesto social que tinha diferenças importantes na Europa. As reações populares às diferentes receitas e doses de austeridade impostas após a grande crise financeira de 2008 exibiam sinais políticos contrários. No norte e centro europeus, crescia o populismo de direita, tingido de racismo e xenofobia. Da Finlândia à Holanda, passando pela Alemanha e o seu reforço em França, assistimos ao crescimento eleitoral dos partidos de extrema-direita. No sul da Europa, pelo contrário, era no campo político da esquerda que o protesto nascia. Em Espanha, logo em 2011, assistimos à explosão do movimento de rua do 15M, protagonizado por jovens e que veio a desaguar na formação do Podemos. Na Grécia, o Syriza tomava dianteira na esquerda depois do colapso do centro-esquerda do PASOK e ganhava as eleições em 2015. E também em Portugal, em 2016, a esquerda transformou em votos a onda de protestos que agitaram os anos do governo da troika e, na sua sequência, a “esquerda à esquerda” dos socialistas participou pela primeira vez no suporte a um governo em quase 50 anos de democracia constitucional.
A interpretação do cisma do protesto na Europa era que a Sul ainda se guardava a memória dos regimes autoritários que aqui vigoraram até ao último quartel do século XX e prevalecia uma tradição de mobilização ancorada à esquerda, que foi quem os combateu. A esquerda parecia ainda deter as organizações sociais e as sociabilidades capazes de politizar e organizar o protesto social. Essa rede de pertenças e organizações vinha de trás – da tradição dos sindicatos, das organizações culturais, das vivências partilhadas nos locais de trabalho e nos bairros residenciais. A esquerda entranhava-se numa cultura popular. Ela era parte dessa mesma cultura popular no quotidiano que vinha de um tempo com menos canais de televisão, menos ofertas culturais no “mercado”, e em que não havia nem internet, nem redes sociais.
Em 2018, quando os coletes amarelos irromperam nas ruas de França, o mais surpreendente era o sinal percetível de uma imensa raiva popular, mas que desta vez não se ancorava nas organizações sociais de esquerda. Quem acompanhou essa explosão notava a novidade de um protesto de rua algo disperso, incoerente na sua agenda política, mas pela sua significativa violência no espaço público parecia bastante permeável à infiltração da extrema-direita. Subitamente, e contra a tradição europeia do pós-guerra, parecia ser a direita a ser capaz não apenas de politizar o mal-estar popular, mas de assumir explicitamente a radicalização dos protestos nas ruas.
Por cá, ainda houve quem tentasse uma mobilização semelhante. Foi um absoluto flop. Apesar de alguns milhares de “likes” nas redes sociais e das câmaras de televisão fazerem “diretos” da manifestação, apenas umas dezenas de pessoas se concentraram nesse dia no Marquês de Pombal em Lisboa. Mais recentemente, o Chega tentou lançar também protestos na rua, mas agora em versão de ameaça e intimidação ao pluralismo democrático, ao tentar cercar a sede de uma força partidária, o PS. Falhou estrondosamente.
A mudança eleitoral de 10 março, contudo, coloca-nos hoje duas questões. Primeiro, não sabemos bem o que seria agora uma convocatória deste tipo, de tão inebriados nos parecem os apoiantes da extrema-direita pelos resultados nas urnas. Segundo, a questão não é se a esquerda deixou de apontar as causas, os culpados, as soluções em relação aos problemas sociais das camadas populares, ou até de ter organizações capazes de polarizar o protesto. O que parece ter perdido é o ingrediente central da construção de um bloco social – o enraizamento na cultura popular e a presença nos espaços do quotidiano em que se faz socialização, se criam pertenças e se opera a politização. A esquerda bem pode dizer que o mal viver tem a sua origem na contenção salarial que prevalece quase uma década e meia depois da aterragem da troika; ou que os serviços públicos sofrem por falta de investimento. A narrativa da extrema-direita tornou-se mais forte para contar a história do presente e aponta outros culpados: as transformações sociais, as mudanças nas identidades; os novos fluxos migratórios; as “raças” e os pobres que merecem castigo.
Sabemos que as redes sociais e a comunicação social têm uma enorme importância na formação de opiniões. Sabemos que a presença da extrema-direita nas redes é financiada por interesses poderosos e empresários endinheirados. Sabemos do fascínio da comunicação social pelo culto do insulto e do disparate da extrema-direita. E sabemos que todos estes espaços são governados pela lei de que quem paga, manda. O que implica que nesses espaços a esquerda está sempre em desvantagem. Para contrapor a esses poderes fáticos, a esquerda tem de reinventar a sua presença na vida dos segmentos populares e entrar pelo seu quotidiano adentro. Já o fez em condições bem duras – contra a censura, a polícia política, as prisões e a violência do Estado Novo. Está na hora de se reinventar e organizar para essa politização. Se não fizer, estará perdida.
(PS: o título da crónica foi indecorosamente “roubado” a um excelente livro do Noel Thompson)»
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