21.3.24

Montenegro: de “marca branca” a “kinder surpresa”

 


«Se o PS tivesse conseguido mais um ponto percentual teria vencido as eleições e toda a nossa grelha de análise seria muito diferente. E se é inevitável que ela seja diferente para falar do futuro, não faz grande sentido, pela pouca diferença entre a AD e o PS, que mude a forma como falamos sobre o que nos trouxe até aqui.

Temos debatido a perda de meio milhão de votos do PS depois de oito anos de poder, uma crise inflacionista que derrotou a generalidade dos governos europeus e a queda de um governo de uma maioria absoluta decepcionante por causa de umestranho caso judicial. Tirando o crescimento económico e o excedente orçamental (que tenderá a beneficiar o próximo governo, e essa é ironia de ver o PS bom aluno a ser castigado), tudo levava a esta derrota, até de forma mais expressiva. Extraordinário é que, apesar deste contexto político, PSD e CDS consigam, juntos, o pior resultado em percentagem da sua história e mais curta vitória de uma candidatura face a outra. O voto passou por cima das suas cabeças para o Chega e o responsável por esta proeza quase é tratado como um génio político.

Na realidade, há coisas surpreendentes de Luís Montenegro. E quando as coisas são surpreendentes tendemos a atribui-las a talentos misteriosos dos protagonistas. As pessoas do meio político e mediático sabem quem ele é: um político apagado vindo do aparelho partidário. Venceu no vácuo porque se julgavam que ele ia ser substituído primeiro e porque, quando era tarde demais para isso acontecer, decidiram mantê-lo no vácuo. Não teve qualquer mérito na queda antecipada do governo, que o salvou quando preparavam a sua execução política.

O confronto entre Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro foi o confronto entre um dos ministros mais escrutinados da nossa democracia e o primeiro-ministro eleito de que os portugueses algumas vezes menos souberam no momento de tomar posse. Reconheça-se a humildade de Luís Montenegro: ele próprio percebeu que o ideal era não existir, para vencer. Tirando o tático “não é não” (em que sempre teve pouca convicção de princípio), que apesar de ser óbvio depois de Rui Rio demorou a sair da sua boca, sua campanha não foi mais do que uma gestão de silêncios. Falar pouco, propor quase nada e fazer figas.

Se foi assim na política, foi assim na exibição da personalidade. Montenegro não existe. É uma espécie de marca branca da política, como eu disse durante a campanha eleitoral. Um bom exemplo é a curta entrevista “pessoal” que deu para um vídeo de campanha. Todas as respostas foram medidas ao milímetro para que ninguém acreditasse que o Luís pudesse ter vida própria. O prato preferido era o prato nacional, o cozido, mas do que mais gosta é das couves, para não chatear ninguém. Apesar de ter sido do Conselho Superior do FCP, o seu clube é o de todos nós, "Portugal, Portugal". O livro e o filme preferidos são “A Insustentável Leveza do Ser” e “O Silêncio dos Inocentes”, não fosse ler ou ver alguma coisa que alguém nunca ouviu falar. Na série e na música opta pelo revivalismo de má qualidade, juntando "Os três Duques" e "Viva lá Vida". A banda é a que enche estádios – os Coldplay. A viagem foi a casa do seu pai com os filhos, não fosse alguém achar que o dono do casarão em Espinho tem gostos caros. O objetivo de toda a campanha, das propostas ao perfil de inventou para si, era não ter rejeição eleitoral de ninguém. Não existir. E vai tomar posse sem, de facto, ter uma existência comprovada.

Na política é igual. Tudo o que sabemos sobre o que quer fazer no futuro é, para além de um choque fiscal baseado num cenário macroeconómico fantasioso, para os próximos meses: aproveitar a folga orçamental que lhe foi deixada para distribuir dinheiro, preparando-se para uma crise política que o possa levar rapidamente a votos. É esta e não mais do que esta a sua visão para o País. Para quem se queixava de António Costa, não se pode dizer que se tenha ficado a ganhar com a troca. Montenegro não tem um programa para os próximos meses, tem uma promoção para as próximas eleições.

Já se percebeu que enquanto PS e Chega são pressionados para garantir a estabilidade, ele vai ser, de novo, dispensado da pressão. O que está disposto a fazer para conquistar essa estabilidade? Ninguém lhe pergunta. E, no entanto, é ele que tem de ter arte para a conseguir, já que disse, vezes sem conta, que o governo anterior podia cair que ele estava pronto para governar. Foi o único a não antecipar este impasse?

Não sei se, nestes meses, a comunicação social vai fazer o que era suposto ter feito antes das eleições. Incluindo o esclarecimento de alguns casos mais complicados, como a estreita relação económica que manteve com a Câmara de Espinho. Sei que, ao ter deixado Luís Montenegro livre – quase sabemos mais sobre a avó de Mariana Mortágua do que sobre o novo primeiro-ministro –, não cumpriu o seu papel, e teremos um kinder surpresa à frente do governo.»

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1 comments:

João Martins disse...

Os casos com este rapaz fazem lembrar os casos com o seu criador. Ainda alguém se lembra da Tecnoforma, do Miguelito na secretaria de estado do ambiente com o ministro Isaltino do charuto? Em que mais parecia o ministro aquele do que este? Fico sempre admirado com a "falta de memória" selectiva desta "comunicação social".