19.7.18

Trump despede-se de 1989



Daniel Oliveira no Expresso diário de 18.07.2018:

«Uma das coisas que me incomoda na forma como tratamos o fenómeno de Donald Trump é a incapacidade de pensarmos para além das nossas irritações. Trump é errático e parece irracional? Sim. Mas, talvez por contágio, acabamos por acompanhar a sua irracionalidade e falta de consistência. É por isso que muita gente ainda atribui a eleição de Trump à estupidez do eleitorado ou às redes sociais. Somos quase tão infantis como Trump quando falamos de Trump.

Quase todos olham para as relações de Trump com a Europa e com a Rússia como se estivéssemos apenas perante idiossincrasias tontas de um lunático a soldo de Putin. Espantam-se por Trump ser mais doce com um regime autoritário do que com as democracias europeias. Poderemos dizer, e eu tenderei a subscrever, que as escolhas de Trump são demasiado arriscadas para os interesses dos Estados Unidos e denunciam, em muitos casos, uma total incapacidade de medir a dose e o tom nas suas declarações públicas. Nisso, a explicação parece-me óbvia: ele só quer saber o que pensa a sua base eleitoral de apoio. Mas isso não quer dizer que não tenha uma estratégia. Resumir tudo a uma traição aos europeus perante um inimigo comum é ignorar que algumas coisas mudaram no mundo.

A primeira é a Europa. Com o fim da Guerra Fria, este continente deixou de ser um espaço de confronto entre dois polos ideológicos. Os EUA partilham alguns interesses com os europeus e outros são contraditórios. A Alemanha tem interesses específicos no Leste europeu que nada dizem aos norte-americanos. Na realidade, apenas são relevantes para a Alemanha e os restantes europeus são obrigados a apoiar quem manda. Ao contrário do que acontecia pelo menos desde a descolonização, em que o Ocidente tinha interesses geralmente comuns, o poder dispersou-se e as alianças passaram a ter geometrias variáveis. Isso é bem evidente na salganhada da Síria. Não podemos passar o tempo a recordar o fim da Guerra Fria e o nascimento de uma nova ordem mundial, passando pela perda de relevância da Europa no mundo, e depois analisar o comportamento de Donald Trump, por mais errático que seja, ignorando essa nova realidade. Mesmo na crítica ao discurso de Trump sobre as contribuições financeiras para a NATO temos um dever de honestidade. Na União Europeia, a Alemanha interessa-se por si e impõe àqueles que a ela querem estar aliados o preço a pagar por isso. Na NATO, os EUA interessam-se por si e impõem aos aliados o preço a pagar por isso. Dantes eram indispensáveis para os EUA e eles pagavam por isso. Hoje somos menos e não querem pagar tanto. Chocados? Só os que contam a história do mundo através de filmes de Hollywood.

A segunda é a Ásia. Apesar da geoestratégia e do poderio militar ainda contar muito no xadrez internacional, o lugar que cada um ocupa no tabuleiro de uma economia totalmente globalizada está hoje muito mais dependente do poder comercial e financeiro do que estava há trinta anos. E a maior preocupação dos EUA é, neste momento, a China e o seu poder económico (com ele virá o resto). Claro que a Rússia conta e a forma como vai interferindo na vida interna dos países diz-nos como pode contar bastante. Mas é neste mundo a três que Trump pensa quando fala com Putin. Estará provavelmente enganado ao pensar que num mundo a três poderá contar com a Rússia, mas não está enganado ao saber que as coisas não se dividem entre um “mundo livre” liderado pelos EUA com uma aliança de ferro com a Europa e um bloco liderado pela Rússia. Esse mundo já não existe. Interessa o comércio, não a velha Guerra Fria. Trump não desfez a ideia de Ocidente, apenas confirmou o enterro do Ocidente enquanto entidade política. Se olharmos para a União Europeia percebemos que a Europa fez o mesmo há algum tempo.

A terceira é a relação entre o capitalismo e a democracia. Havia, pelo menos na aparência, uma relação entre capitalismo e democracia. E não apenas na aparência. As burguesias nacionais eram isso mesmo: nacionais. Os seus interesses eram muitas vezes coincidentes com os interesses das nações. E acabaram por ser, em grande parte das vezes, elementos fundamentais na construção das democracias nacionais. Democracia liberal, Estado-nação e industrialização são parentes com relações muito próximas. Com a globalização e financeirização da economia, as elites económicas estão a perder o seu vínculo nacional e, com isso, o seu vínculo à democracia. Por isso tenho escrito que penso termos entrado na fase pós-democrática do capitalismo. Hoje, os melhores exemplos de eficácia competitiva no capitalismo global vêm de ditaduras como a China. O fascínio que Trump tem por homens de mão pesada não é uma tara sua, corresponde ao arquétipo do líder político atual. A eleição de Trump, impossível há trinta anos, prova isso mesmo. Da normalização do poder dos eurocratas sobre os eleitos à criação, nos acordos de comércio internacional, de instrumentos de mediação que estão acima das leis dos Estados e dos seus tribunais, tudo nos explica que há um divórcio crescente entre a democracia e o capitalismo que segue em linhas paralelas com a perda de poder dos Estados. Para analisar a política norte-americana temos, por isso, de esquecer as velhas divisões ideológicas. Sim, Putin pode ser aliado de Trump, assim como o poderia ser Xi Jinping. A democracia é irrelevante neste jogo porque ela é irrelevante para o futuro do capitalismo financeiro. Na realidade, até é um empecilho.

Podem fazer de Trump um pateta porque ele é um pateta. Mas quando um pateta chega ao poder é sempre mais do que isso. Não sei se Trump é o começo de uma era, tenho a certeza de que encerra definitivamente o mundo de 1989. Os que se chocam com a forma como trata os velhos aliados e os velhos inimigos é porque ainda estão nesse tempo que acabou. Outros que sucedam Trump farão, com outra elegância e mantendo a patine do passado, o mesmo.»
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