13.10.20

Uma questão de confiança



 

«Nas próximas duas semanas assistiremos à negociação fora da negociação para a aprovação do Orçamento do Estado. O Governo soprou cedências extraordinárias que foi fazendo, o BE já soprou exigências a que o Governo não cedeu. O PAN, embrulhado na sua crise interna precoce, não teve a possibilidade de se defender, mas posso eu fazê-lo: o Governo não cumpriu praticamente nada daquilo a que se comprometeu com os animalistas, no orçamento do ano passado. Como António Costa tem uma boa relação pessoal com Jerónimo de Sousa, dispensa o PCP deste jogo. E o facto das negociações para um Orçamento dependerem tanto das relações pessoais do primeiro-ministro é já um mau sinal. 

Que jogo é este, afinal? É o jogo da perceção pública. Interessa a António Costa passar a ideia de que está a dar tudo e que são os outros, sobretudo o BE, que são pouco razoáveis. O objetivo é aumentar a pressão pública para que o preço de criar uma crise política recaia sobre o Bloco e ele não tenha outro remédio que não seja viabilizar um Orçamento de que discorda no essencial e onde muito pouco conseguiu pôr de seu. Interessa ao BE passar a ideia que o fundamental não foi garantido para reduzir essa pressão e ter mais espaço para negociar ou para votar contra. 

Durante a geringonça, houve alguns jogos assim, em versões muito mais ligeiras. É natural. Mas não só havia um documento que definia as linhas vermelhas e que funcionava como tira-teimas, como havia uma relação política mais distendida e um interlocutor no governo – Pedro Nuno Santos – em quem os parceiros parlamentares do PS confiavam. Quando os acordos se esgotaram, esse rumo comum desapareceu. E Costa mudou tudo. Chutou o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares para cima e, quando as sondagens lhe eram favoráveis, tentou forçar umas eleições antecipadas através da crise artificial dos professores. 

Houve episódios anteriores, mas este marcou o fim da geringonça. E marcou o fim de qualquer relação de confiança entre os partidos de esquerda. Quando, na campanha, o primeiro-ministro garantiu que o BE nada tinha a ver com o nascimento da geringonça fechou definitivamente o ciclo, o que se confirmou com a recusa de qualquer acordo escrito depois das eleições. Costa fez essa escolha de forma consciente e deliberada, não tentando sequer passar a ideia que estava a tentar negociar um acordo com o BE para a legislatura. Pensar que depois disto este governo poderia depender exclusivamente do BE só pode resultar de um enorme cinismo político. 

Não sei se o BE se verá obrigado a viabilizar mais este Orçamento. Se o fizer, sem cedências muito mais significativas do que as que conhecemos, será apenas por medo das consequências políticas de uma crise. E sabendo que, tal como sucedeu na crise dos professores e na última campanha, será abandonado à beira da estrada mal isso favoreça Costa. Catarina Martins sabe que Costa não lhe propõe uma parceria, mas uma armadilha. E isso torna qualquer negociação numa charada insuportável. 

Algumas pessoas espantam-se por eu, que defendi desde a primeira hora um acordo à esquerda, andar a defender que esse acordo só deve acontecer com grandes cedências de Costa. Faço-o por três razões. 

Primeira: não defendo acordos que não sejam politicamente benéficos para todas as partes. Um acordo em que uma parte se sente perdedora está condenado a falhar. 

Segunda: os acordos entre forças políticas devem existir quando as une um objetivo comum - na legislatura anterior, era a reversão de uma ofensiva sem precedentes do governo mais à direita que a nossa democracia já conheceu. Se é para ter apenas um acordo de regime deve ser entre as duas forças que historicamente têm capacidade de governar. 

Terceira: os acordos dependem de relações de confiança que se alimentam e cultivam. Não é por acaso que a AD entre Marcelo e Portas morreu. Essa relação não existia. Também não acontece, há pelo menos dois anos, entre António Costa e Catarina Martins. Costa detesta o Bloco e a sua líder e é incapaz de o disfarçar, mesmo em público. E isso em política também conta. Sobretudo com um primeiro-ministro tão visceral. 

As sucessivas cedências a uma chantagem continuada, para evitar uma crise política, só podem resultar numa derrota e esvaziamento dos partidos à esquerda do PS. Num tempo em que a direita está em crise, a extrema-direita em crescimento e o centro-esquerda a fazer a mera gestão quotidiana, esse esvaziamento teria um custo político que desestruturaria o nosso sistema partidário. Olho para o resto da Europa e sei que não o quero. 

António Costa ajudou a construir a improvável geringonça, num momento em que estava frágil. Quando se sentiu forte, não a soube preservar. Está a pagar o preço disso. É tudo uma questão de confiança.» 

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