22.6.22

Equivalências históricas

 


«Mohammad Al Attar, um jovem dramaturgo sírio refugiado na Alemanha, chamou-me a atenção para a intervenção militar russa na Síria como teste de equipamento e treino da aviação na identificação de alvos inimigos e destruição de cidades. Ele considera que a guerra na Síria é o equivalente da guerra civil em Espanha (1936-1939), onde o apoio nazi às tropas nacionalistas funcionou como preparação da Segunda Guerra Mundial.

O raciocínio tem fundamento, embora a escala de intervenção seja diferente. 16.000 alemães participaram na guerra civil do lado nacionalista espanhol como pilotos, artilheiros, condutores de tanques e instrutores militares. Os nazis exportaram enorme quantidade de material militar para Espanha, testando tanques e aviões. Treinaram 56.000 militares nacionalistas. A Legião Condor participou em numerosas batalhas, tendo sido decisiva na destruição de cidades resistentes, aviões e navios republicanos. A vitória nacionalista deveu-se em parte ao apoio nazi e fascista, que forjaram ali a sua aliança.

A ocupação da Crimeia por tropas russas ocorreu em fevereiro de 2014, seguida em abril pelas declarações separatistas no Donbass. A intervenção militar russa na Síria foi lançada em setembro de 2015. Em dois anos a força aérea desencadeou mais de 20.000 missões, enquanto 45.000 soldados e marinheiros adquiriram experiência de combate. Os russos obtiveram uma base militar e uma base naval permanente na Síria. O método de destruição de cidades e alvos civis, já ensaiado na Tchetchénia na guerra de 1999-2009, foi ali aperfeiçoado.

As equivalências históricas não ficam por aqui. A justificação da expansão nazi residia na unificação do povo alemão, supostamente oprimido na Áustria, nos Sudetas, em regiões tão distantes como o Volga. O tratado Molotov-Ribbentrop de 1939 previa a partilha da Europa de leste entre a União Soviética e a Alemanha nazi. A ocupação de parte da Polónia, da Finlândia, da Roménia, e das repúblicas Bálticas pela União Soviética foi feita de imediato.

A proteção das populações de origem russa tem sido a justificação de Putin para as sucessivas invasões da Geórgia, Chechénia e Ucrânia. O método de destruição de cidades para quebrar a resistência é semelhante. Surgem agora declarações de russos no Cazaquistão e noutras repúblicas independentes da ex-União Soviética que não querem ser “protegidos”. O preço a pagar é elevado: o recrutamento militar compulsório no Donbass e na Crimeia enviou para a frente de combate na Ucrânia milhares de jovens. A política extrativista russa passa pela apropriação de cereais ucranianos e pilhagem dos complexos industriais arrasados no Donbass.

O ressentimento nazi face à derrota na Primeira Guerra Mundial e ao pagamento de indemnizações de guerra tem o seu equivalente no ressentimento russo face à desagregação da União Soviética. Existe uma diferença: enquanto a Alemanha nazi via o seu futuro na expansão para leste, a Rússia vê o seu futuro na recuperação do passado imperial. A elite russa, criada no final dos anos de 1990 em resposta à transição radical para uma economia de mercado depois do colapso da União Soviética em 1991, está obcecada pelo passado imperialista herdado do tempo dos czares, reconstituído e alargado pelo regime comunista. Como bem definiu Masha Gessen, não existe visão de futuro para esta elite, que se apropriou das grandes empresas estatais e estabilizou a economia russa na base da exploração de matéria-primas. O futuro está no passado, isto é, na recuperação de territórios coloniais que garantam a expansão da política extrativista, enquanto a política de guerra permite a perpetuação desta elite que estava em declínio político.

Contudo, a diferença de projetos imperiais nazi e russo não parece ser absoluta. O delírio de domínio da Europa está presente nos debates da televisão estatal russa, onde a ameaça nuclear e a invasão dos países ocidentais são temas invocados com frequência. A ideia nazi de espaço vital é repetida.

A transformação do regime russo numa ditadura é visível nos últimos vinte anos. A estrutura económica é controlada por um segmento de grandes empresas com ligações estatais que não dá espaço à emergência de alta tecnologia, ao contrário do que acontece na China. A oposição tem sido arredada do sistema político, com detenções em massa daqueles que protestam, política complementada pelo assassinato de opositores políticos, como Boris Nemtsov, e de jornalistas independentes (200 foram eliminados). O ensino das ciências sociais nas universidades, importantes para a criação de um espírito crítico, nunca ganhou raízes num universo universitário que está agora sob controlo político centralizado. A censura impede inclusive a referência à existência de guerra na Ucrânia. O universo da propaganda russa estabelece uma realidade paralela.

A ideologia nacionalista extremista é outra das equivalências históricas. A evacuação do internacionalismo operário e do apoio ao desenvolvimento de nacionalidades define a política de Putin, crítico de Lenine. A narrativa histórica que Putin absorveu é baseada no nacionalista Sergei Soloviev (1820-79) e no russo branco Ivan Iliin (1883-1954), monárquico, admirador do nazismo e do fascismo, que propunha o reforço do império. A russificação do Donbass, que está neste momento a decorrer, é feita com o envio de manuais escolares nacionalistas.

A rejeição do direito internacional revela continuidades. A invasão de países é uma forma extrema de violação do direito dos povos. A Ucrânia, na opinião de Putin, não tem direito a existir. A dignidade e integridade da pessoa humana, forçada a emigrar ou à perda de propriedade, não existe. O direito à vida, o primeiro de todos os direitos, é violado todos os dias nas condições desumanizadas de guerra. O desprezo total pelos direitos humanos faz parte desta política de submissão através da destruição e pilhagem. A arrogância anti-humanista identifica qualquer projeto totalitário.

A última equivalência histórica tem a ver com o ódio visceral à democracia liberal. Os anos de 1920 e 1930 foram palco de uma poderosa ofensiva contra o regime parlamentar, visando a instalação de regimes ditatoriais com formas corporativas de representação ou eleições fraudulentas. As eleições na Rússia seguem a mesma linha de exclusão da oposição e de manutenção do país amordaçado pela censura e ameaça de detenção. A regra democrática básica de respeito pela diversidade de opinião ameaça regimes totalitários.

As equivalências históricas, para as quais Richard Evans tem chamado a atenção, não significam repetições. Concentrei-me aqui nas equivalências entre a Alemanha nazi e a Rússia de Putin dada a partilha da ideologia nacional-imperialista, mas poderia ter alargado a análise à absorção dos métodos de guerra dos americanos no Vietname ou no Iraque. É a ideologia nacionalista e o projeto totalitário que estão de novo em jogo ao fim de cem anos da emergência fascista/nazi. É este projeto que atrai os servidores voluntários ocidentais de Putin.»

.

0 comments: