«Numa das suas dissertações magistrais sobre Maquiavel, o Professor João Bettencourt da Câmara (1948-2017) relembrava que, entre aqueles que, ao longo dos séculos da Civilização se têm dedicado ao pensamento filosófico e científico, houve sempre uma predisposição para julgarem os “seus” tempos de excepcionais na história das relações internacionais e dos povos. Há, efectivamente, períodos de absoluta anormalidade sistémica, sendo que todos os outros momentos, aqueles que compõem a linha de continuidade histórica, não são mais do que o comportamento natural do sistema internacional, em constante estado de tensão e conflito.
Considero que muitos daqueles que, constantemente, se apresentam à opinião pública como descodificadores dos tempos supostamente extraordinários que eles próprios dizem estar a viver, revelam um esquecimento comprometedor ou selectivo da História. Esses “intérpretes”, que em vários fóruns não se cansam de repetir, a cada ano que passa, aquilo que consideram ser momentos únicos e raros no percurso da história política da Humanidade, constroem um raciocínio baseado na omissão ou desconhecimento de acontecimentos, alguns deles recentes, resultante de formatações intelectuais ou de agendas ideológicas que em nada têm a ver com uma análise científica e rigorosa das dinâmicas sociais e políticas.
Por estes dias, há uma banalização do critério de excepcionalidade na classificação dos acontecimentos dos Estados e das lideranças, que ignora, parcial ou completamente, o pensamento criado, os debates gerados, a doutrina produzida, os sobressaltos sociais e conflitos políticos que determinadas épocas ou períodos provocaram no passado. Para estes novos “profetas”, tudo é perigosamente novo num mundo em constante confrontação, com fenómenos que só eles compreendem e sabem explicar. No tempo em que vivem e comentam, neste nosso tempo, portanto, tudo é absolutamente extraordinário, tudo é inequivocamente ameaçador.
Trump, as migrações, Johnson, os populismos, os extremismos, o Brexit e o fim da UE, os nacionalismos, as fake news, por diante… Tudo isto é inédito e único, porque, para estas pessoas, agora, sim, estamos próximos do Apocalipse. É como se fizessem tábua rasa dos dramáticos e sistémicos acontecimentos que ao longo dos séculos foram fazendo parte da evolução das comunidades e dos sistemas políticos. É como se ignorassem o facto de os nacionalismos se terem expressado com toda a sua força no século XIX ou que a História dos povos, desde a Antiguidade, tenha produzido todo o tipo de carniceiros e ditadores. Ou então, é como se menorizassem o apogeu da ascensão dos extremismos e fanatismos no século XX, provocando milhões de mortos e um rasto de destruição.
Veja-se, por exemplo, o caso europeu. Basta recuar alguns anos, até ao período de Guerra Fria, e perceber o que era a vivência por detrás da Cortina de Ferro e a ameaça constante da destruição nuclear. Ou, então, mais recentemente, relembrar as atrocidades que se viveram nos Balcãs no início dos anos 90. Por mais crises do euro, Brexits, Orbáns ou Salvinis que a Europa agora tenha, nunca o Velho Continente – dentro de um quadro de análise que tenha em consideração uma linha temporal considerável – viveu tamanha estabilidade e prosperidade numa área geográfica tão abrangente. Das Flores a Moscovo, nunca a Europa esteve tão perto daquilo que é o sonho da “paz perpétua”.
Na altura em que escrevia este texto, Rui Tavares, no seu habitual espaço de opinião no PÚBLICO, concretizava milimetricamente essa tal perspectiva da excepcionalidade do seu (meu) tempo. Numa abordagem legítima, diga-se, Rui Tavares escrevia o seguinte a 21 de Agosto:
“O problema é que o nosso atual ‘aqui’ é bem mais complicado do que aquilo a que estávamos habituados. É, desde logo, mais complicado até do que a muito complexa crise de 2008, um evento económico de um tipo que só ocorreu por uma vez nos 80 anos anteriores. Outros acontecimentos que estamos a viver não são de ciclo curto, daqueles que ocorrem uma vez a cada quatro anos, de acordo com os calendários eleitorais. Nem sequer uma vez por geração, ou até uma vez por século. Estamos a ver acontecimentos de uma magnitude semimilenar — os 500 anos que marcam o refluxo da expansão europeia e da sua centralidade na economia global, ou os mesmos cinco séculos que nos separam da única revolução comunicacional comparável à que estamos a viver, a da invenção da imprensa. Ou estamos mesmo a ver ocorrências inéditas na história humana, como a dos efeitos que temos na alteração do clima do planeta.”
Além de considerar esta visão manifestamente exagerada, com excepção das alterações climáticas, aquilo que hoje é identificado por muitos como ameaças ao status quo sistémico terá, na verdade, pouco impacto para criar esse efeito. Há crises? Desafios? Conflitos? Ameaças? Seguramente. Tal como sempre houve ao longo da história das lideranças e das sociedades. A questão é se os tais fenómenos têm repercussões sistémicas de médio e longo prazo.
Ou seja, com será que, daqui a umas décadas, analistas ou estudantes de Relações Internacionais irão classificar estes tempos que muitos agora consideram absolutamente extraordinários e de ruptura. Serão tempos de anormal turbulência sistémica ou, por lado, acontecimentos que, simplesmente, decorrem daquilo que são as dinâmicas naturais da História, dos povos e das nações? Inclino-me para a segunda hipótese.
A revisão da matéria dada permite-nos manter tudo em perspectiva, não perder a linha de continuidade da História e não olhar para o “aqui” ou para o “agora” com qualquer presunção ou ampliação dos acontecimentos. Talvez por ser da área das Relações Internacionais, tenha bem a consciência da raridade histórica desses momentos em termos sistémicos. Normalmente, ao longo dos séculos, esses períodos de verdadeira anomalia sistémica estão associados a rupturas de paradigma nas Relações Internacionais. De tal maneira que houve mesmo pensadores que, perante aquilo que consideravam ser a grandiosidade dos seus acontecimentos contemporâneos, acreditaram estar a viver o “fim da História”. Políbio talvez tenha sido o primeiro. Francis Fukuyama foi seguramente o último.
Diga-se que ambos viveram tempos absolutamente extraordinários e até mesmo Fukuyama, autor de uma teoria “requentada, foi inspirado por um dos períodos mais fascinantes da história do século XX e que resulta numa transição sistémica, que ocorreu entre 1989-1991, mas cuja clarificação e consolidação ainda se faz sentir. É importante sublinhar que 20 ou 30 anos é um período curto em termos sistémicos.
Analisando-se alguns dos fenómenos políticos e sociais de hoje, e que muitos consideram ser únicos e até mesmo de “magnitude semimilenar” (recorrendo a uma expressão de Rui Tavares), recupero aqui alguns casos que poderão ajudar a desconstruir algumas das ideias ou percepções que vão sendo construídas.
Sobre a surpreendente eleição de Donald Trump (terá sido assim tão surpreendente?), seguramente um dos acontecimentos mais marcantes destes anos recentes, tanto já se escreveu e se disse, sendo que, para muitos, é o sintoma da decadência das virtudes e dos valores da República dos Estados Unidos. Trump, que nem sequer era uma novidade na cena interna americana, surge aos olhos do mundo como uma distorção, uma anomalia, um catalisador de rupturas sistémicas, um produto de uma suposta crise das democracias ocidentais que emergiu nestes anos e produziu personagens como Bolsonaro, Orbán, Salvini e até Johnson (quase toda a gente já se esquece que, durante oito anos, foi mayor de Londres, uma das cidades mais populosas, evoluídas e sofisticadas do mundo).
A leviandade com que se assume esta tese é, por vezes, desconcertante, porque desvaloriza os acontecimentos e ensinamentos da História. Além disso, por mais criticáveis e desprezíveis que alguns sejam, muitos destes novos “vilões” em nada se comparam com aquilo que o passado já infligiu à Humanidade e com as consequências sistémicas que daí advieram.
Da mesma maneira que é bastante distorcida a forma como se olha para as eventuais ameaças que alguns Estados colocam hoje ao sistema internacional. Há uma tendência para hiperbolizar neste momento aquilo que, historicamente, tem sido uma evidência. Quando muitos analistas e comentadores falam dos perigos da Coreia do Norte, do Irão ou da China, como se estivéssemos num momento do “agora ou nunca”, essa posição é de tal forma ingénua, como irreflectida. Na verdade, há décadas que a tensão existe no sistema internacional por causa destas potências e basta recuar ao momento em que George W. Bush, na sequência dos atentados do 11 de Setembro, apresentou ao mundo o “Eixo do Mal”, composto pelo Irão, Iraque e Coreia do Norte.
Quanto à China, desde sempre que é um actor competidor no sistema internacional e, por definição, um rival dos Estados Unidos. Desde o fim da Guerra Fria e com o advento da globalização, era expectável que aquele país viesse a assumir um papel mais relevante no novo sistema multipolar. Há muita literatura sobre o assunto. Nada é novo, nem mesmo a questão da soberania de Taiwan ou de Hong Kong. Numa análise realista, dir-se-ia que a China é hoje um Estado reforçado militarmente, disputando com os Estados Unidos a influência na zona do Pacífico, mas Pequim também nunca esteve tão dependente dos mecanismos do sistema internacional como está hoje, nomeadamente em termos económicos e tecnológicos. É o corolário do conceito de “interdependência complexa” teorizado por Robert Keohane e Joseph Nye.
O princípio do relativismo absoluto é perigoso, mas perder a noção de perspetiva histórica é irresponsável e contraproducente. Porque é essa perspectiva que nos permite enquadrar muitos dos acontecimentos que hoje vivemos.
Quando comummente se fala na crise das democracias ou na fragilização das lideranças tradicionais, é interessante perceber que estas temáticas há muito que são analisadas e estudadas. Há anos que são uma realidade e que preocupam. Em 1975, por exemplo, o cientista político Samuel P. Huntington – que, anos mais tarde, se viria notabilizar internacionalmente com a sua tese do “Choque das Civilizações” (Foreign Affairs/Verão de 1993) – foi co-autor de um relatório que ficou célebre: “The Crisis of Democracy: On the Governability of Democracies”. Neste relatório foram levantadas questões muito pertinentes, entre as quais, a autoridade e a força dos Governos ou a incapacidade das burocracias estatais darem respostas eficazes nas sociedades.
Também ao nível das relações entre os Estados Unidos e a Europa, e ao contrário do que é veiculado e percepcionado, a eleição de Donald Trump não parece ter trazido novidades significativas à dinâmica que já era uma realidade desde o final da Guerra Fria, ou seja, a do distanciamento geoestratégico e geopolítico crescente entre os dois aliados. É muito revelador quando se relê o que o historiador e comentador Robert Kagan escreveu em 2003 no seu célebre “Of Paradise and Power”: “It is time to stop pretending that Europeans and Americans share a common view of the world, or even that they occupy the same world.” E acrescentava: “Europe is turning away from power, or to put it a little differently, it is moving beyond power into a self-contained world of laws and rules and transnational negotiation and cooperation. […] Meanwhile, the United States remains mired in history, exercising power in an anarchic Hobbesian world where international laws and rules are unreliable […] That is why on major strategies and international questions today, Americans from Mars and Europeans are form Venus.”
Veja-se outro exemplo da distorção analítica que reina por estes dias nas nossas sociedades, com a mais recente “moda” das fake news, um conceito que passou a fazer parte do léxico de jornalistas, comentadores, políticos e da opinião pública em geral. É todo um admirável mundo novo, mas o extraordinário é que, provavelmente, nenhuma das milhares de fake news que circularam nos últimos tempos teve consequências tão dramáticas como aquelas que conduziram à guerra no Iraque em Março de 2003. Sim, as fake news sempre existiram. Toda a construção do casus belli feito por Washington foi um embuste deliberado de proporções gigantescas, alimentado pela administração americana, nomeadamente Pentágono e Casa Branca, dominada por “falcões” como Dick Cheney, Richard Perle, Paul Wolfowitz, George Tenet ou Ahmed Chalabi.
A imprensa de referência americana não hesitou em propagar e legitimar toda a informação falsa relacionada com as tristemente célebres armas de destruição maciça no Iraque, sem qualquer espírito crítico ou escrutínio. A então reputada jornalista do New York Times, Judith Miller, foi uma das fakers de serviço. Mais tarde viria a cair em desgraça, tendo o New York Times que pedir desculpa aos leitores. Curiosamente, apenas dois jornalistas, que na altura trabalhavam para o publisher Knight Ridder, fizeram o seu trabalho e não “compraram” aquilo que a Casa Branca e o Pentágono lhes tentou “vender”.»
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