«Ao contrário do que muitos julgam, Al Jolson não foi o primeiro branco a pintar-se de preto para fazer de negro. Desde 1830 - ou seja, muito antes do sonoro The Jazz Singer -, as companhias teatrais itinerantes da América tinham por hábito usar cortiça queimada ou carvão para tisnar a pele dos actores nas representações de episódios da escravatura. A prática prolongou-se no século XX, com Al Jolson mas não só: Fred Astaire, Mickey Rooney, Judy Garland, todos sofreram na tela uma imersão de negrume.
Também entre nós, por bandas de 1875, o actor Nunes, vindo dos Açores, actuava em espectáculos populares na Feira de Belém todo pintado de preto, com uma malha justa colada ao corpo, caracterizado de selvagem africano nu, cantando o tango O Africano, que dizia: "Nasci em Loanda / Bento me chamo / Como azeviche / Preto nasci." Sucede que o actor Nunes, ao que consta, era pessoa de pouco aprumo (e, pelos vistos, nenhum banho), homem de tal forma desleixado que se deitava na cama sem mudar de trajo, e adormecia envolto na sua malha de negro. A malha, claro, começou a abrir buracos e o Nunes, por preguiça, ia pintando com tinta preta as marcas de pele branca que emergiam aqui e acolá. O espectáculo foi um sucesso, permanecendo em cena dois meses. No final, quando o Nunes tirou as ceroulas e a camisola, tinha o corpo todo pintalgado de preto. "Parecia um tigre!", clamou o dramaturgo Sousa Bastos.
Séculos antes do actor Nunes, também Gil Vicente fizera um negro entrar em cena na comédia Frágua de Amor, representada em 1524 por ocasião da boda de D. João III. Cativo de um escrivão, a máxima aspiração do negro era tornar-se branco, "branco como ovo de galinha". Os deuses concretizaram-lhe o desejo, e o negro tornou-se branco, branco no corpo mas não na fala, que continuava a ser "língua de preto". Não era já a cor da sua pele mas essa diferença cultural - ou linguística, se quiserem - que o apartava do mundo dos brancos. E o negro, perdido entre dois universos, menosprezado pelos brancos, receando ser rejeitado pelos da sua etnia, acabou por querer regressar à tez de origem. A cor da pele mudara, os preconceitos não.
Eis um exemplo literário, entre tantos outros, da presença dos africanos na sociedade portuguesa, quase tão velha como a fundação da nacionalidade. Foram por certo muitos, mas ao certo não sabemos quantos. E sempre tiveram entre nós uma "presença silenciosa", nas palavras de José Ramos Tinhorão, autor de Os Negros em Portugal, livro reeditado há pouco, das raras obras que se debruçam sobre essa realidade histórica (o que, por si só, é bem elucidativo do silenciamento e do esquecimento a que tem sido votada a presença dos negros no nosso país). Não se sabe quantos foram, mas foram decerto aos milhares, talvez mesmo milhões. Escrevendo a partir de Évora, em Março de 1535, o flamengo Nicolau Clenardo dizia em carta a um amigo, teólogo em Lovaina, que "os escravos pululam por toda a parte". E acrescentava: "Todo o serviço é feito por negros e mouros cativos. Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. Estou em crer que em Lisboa os escravos e as escravas são mais do que os portugueses livres de condição. Dificilmente se encontrará uma casa onde não haja pelo menos uma escrava destas. É ela que vai comprar as coisas necessárias, que lava a roupa, varre a casa, acarreta a água, faz os despejos à hora conveniente: numa palavra, é uma escrava, não se distinguindo duma besta de carga senão pela figura."
Se a comparação dos cativos com bestas de carga se afigura tristemente realista e certeira, a estimativa de Clenardo é exagerada: na Lisboa da época, de modo algum existiam mais escravos do que homens livres. Em meados do século XVI, os escravos não chegavam a 10% da população da capital, de acordo com os cálculos da altura. Com o tempo, foram crescendo em expressão numérica, ou talvez diminuindo, diluindo-se entre a maioria branca por via de cruzamentos e concubinatos. Ao certo, pouco se sabe, uma vez mais. Aqui e ali, emergiam das trevas da escravatura, e a sua presença tornava-se menos silenciosa, assumindo até os tons da alegria e do riso, em flagrante contraste com o carácter sorumbático dos lusitanos. Um viajante italiano do século XVI observava que, "ao passo que os portugueses, por gravidade, andam sempre tristes e melancólicos, não usando rir nem comer nem beber com medo de que os vejam, os escravos mostram-se sempre alegres, não fazem senão rir, cantar, dançar e embriagar-se publicamente em todas as praças".
Os negros apareceram na literatura de cordel, em almanaques astrológicos escritos em "língua de preto" que chegaram a ter tiragens de 60 mil exemplares, nas procissões e nas confrarias, nas touradas (o primeiro toureiro negro, ao que parece, exibiu-se em Almeirim, na presença de D. Sebastião), nos espectáculos de feira, nas comédias e nas paródias, nas revistas do ano, nas barracas e bodegas que tinham a pitoresca designação de "malcozinhado" e eram tascas junto à Ribeira de Lisboa onde durante centenas de anos, dos séculos XVI a XIX, comeram em fraternal convívio com os brancos de poucas posses e humilde condição. Nos alvores de Oitocentos, a sua música teve papel determinante na origem do fado-canção lisboeta e há dezenas de expressões de raiz africana na nossa língua; só para citar algumas: banana, banjo, bunda, búzio, cacimba, cachimbo, cambada, careca, catita, cubata, dengue, empatar, encafuado, farofa, fumo, fungar, ganga, inhame, macaco, maçaroca, maluco, minhoca, missanga, moleque, mono, pinga, senzala, soba, tanga, xingar, zanga, zombar.
A norte do país, na freguesia de Gemunde, concelho da Maia, chegou mesmo a instaurar-se o culto a um escravo negro elevado à condição de santidade pela devoção popular. O culto do "Santo Preto" foi zurzido asperamente pelo então bispo do Porto, que ordenou em 1841 a destruição de uma pequena ermida que o povo lhe consagrara. Contudo, ainda hoje se fazem romarias à Campa do Preto. Todos os anos, no primeiro domingo de Junho, celebra-se uma festa em honra do "Santo Preto", de carácter estritamente popular e sem a presença institucional da Igreja, sem missa, sem procissão, sem pároco oficiante. A sul, na zona de Alcácer do Sal, o etnógrafo Leite de Vasconcelos e outros eruditos depararam com gentes cuja cor e as feições acusavam nitidamente a sua origem africana, os mulatos da ribeira do Sado, população a que os habitantes de Grândola chamavam "carapinhas" e que ficaram conhecidos por "Pretos de São Romão".
Nos nossos dias, encontram-se negros em toda a parte; nas ruas, nos transportes públicos, geralmente nas profissões menos qualificadas e mais mal remuneradas: estafetas motorizados, pedreiros da construção civil, aos balcões dos restaurantes fast food, aos telefones dos call centers, em serviços vários, todos menores ou precários. Entre as mulheres, muitas são empregadas domésticas, ajudantes de cozinheiras, funcionárias de limpezas que começam a jornada de trabalho logo ao raiar da madrugada. Alguns, poucos, conseguem celebrizar-se na música e no desporto; mais raros ainda são os que entram nas universidades; quase nenhuns estão na política ou na liderança de empresas. É fácil intuir nisso tudo marcas de discriminação e de racismo, mas não conseguimos avaliar a sua real dimensão, pois desconhecemos por completo qual o número dos portugueses afrodescendentes. Há palpites, estimativas aproximativas, projecções variáveis, mas não há estatísticas seguras nem dados fiáveis. Desse modo, nunca poderemos dizer de forma rigorosa e objectiva - e insusceptível de ser contestada - se os portugueses de etnia negra estão sobre-representados em certas áreas e sub-representados noutras, quais as causas desse fenómeno, o que deveremos fazer para o combater. Na ausência de números concretos, continuaremos a ter apenas impressões vagas, opiniões de café que variam consoante a subjectividade de cada um, visões carregadas de preconceitos de um sentido ou de outro, contaminadas pela ideologia e pela sensibilidade de quem grita e esbraceja. Ao calor do choque de opiniões inflamadas, imponhamos a fria serenidade das estatísticas. Caso contrário, tudo continuará na mesma, um impasse feito de opiniões extremadas, sem conciliação possível.
Há vozes qualificadas que discordam que nos próximos Censos seja introduzida uma pergunta, de resposta facultativa, sobre a origem étnica dos inquiridos, à semelhança do que foi recomendado pela ONU e já se faz nos Estados Unidos, no Canadá, no Brasil, no Reino Unido, na Itália ou na Eslovénia. Afirmam os críticos que, ao fazer essa pergunta, o Estado, por via do Instituto Nacional de Estatística, estará a consagrar oficialmente uma categorização que é, em si mesma, racista. Acontece, porém, que, por muito que consideremos que "raça" ou "etnia" não passam de "construções sociais" ou "mentais", o facto é que parece existir uma discriminação precisamente em função dessas "construções", e que o combate a essa discriminação e a monitorização dessa injustiça serão tanto mais eficazes - e, sobretudo, mais legítimos e mais consensuais - se forem apoiados no conhecimento objectivo da composição étnico-racial da população portuguesa. Não tenhamos medo da estatística, pois é através dela que conhecemos a realidade do mundo (não é por acaso que as ditaduras e os totalitarismos sempre desprezaram ou manipularam as estatísticas). É tempo de os negros de Portugal saírem do silêncio a que têm sido votados ao longo de séculos - séculos de orgulho e preconceito.»
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