27.12.24

Conto de Natal naval

 


«Quando a eternidade, que é bastante sossegada, foi interrompida pelo som de três pancadas, São Pedro sobressaltou-se. Alguém estava a bater à porta do seu gabinete, o que era invulgar. Abriu a porta e D. João II, que tinha sido tão discreto nos 529 anos que já levava de Paraíso, entrou bastante nervoso.

— Desculpe, São Pedro, mas isto não pode ser. Acabo de ler na “Revista da Armada” que, e cito, “se D. João II visse os drones, a inteligência artificial e a tecnologia que hoje temos disponível, certamente não hesitaria em trocar ideias com o almirante” Gouveia e Melo. Parece que leram os meus pensamentos. Há anos que essa é a minha maior ambição, mas sempre pensei que o sr. almirante Gouveia e Melo não tivesse paciência para me receber. Ora, a revista dá a entender o contrário. Repare como, no desenho, o sr. almirante Gouveia e Melo pousa a mão nas minhas costas, num gesto paternal e convidativo. Assim que li isto manifestei a intenção de visitar imediatamente o sr. almirante, mas os serviços aqui do Céu dizem-me que não é possível.

— Assim é. De facto, são dois planos de realidade diferentes, que não comunicam.

— Ah, mas nesse caso há aqui um erro de concepção gravíssimo. Além de que não me parece que um sítio onde eu sou impedido de trocar ideias com o sr. almirante Gouveia e Melo mereça o nome de Paraíso. É uma designação totalmente desajustada.

— Desculpem interromper — disse Leonardo da Vinci —, mas se for possível trocar ideias com o sr. almirante Gouveia e Melo, eu gostaria de integrar essa comitiva. Trouxe comigo, aliás, alguns amigos que desejam fazer o mesmo pedido. Está aqui o Shakespeare, o Einstein, o Galileu, o Mozart, o Gandhi, o Dostoievsky e o Freud.

— Bom — disse São Pedro —, talvez seja melhor então implementarmos aqui um sistema de senhas. Cada um tira uma e aguarda a sua vez.

— Parece-me uma excelente solução — observou D. João II —, até porque é claramente inspirada no modelo que o sr. almirante Gouveia e Melo adoptou na sua histórica campanha de vacinação.

— Não pude deixar de ouvir a vossa conversa — disse um velho de barbas. Era Arquimedes. — Se essa viagem se concretizar, gostaria de ser um dos primeiros a fazê-la. Eu tive uma ideia dentro de água, mas o sr. almirante Gouveia e Melo tem tido várias, e todas melhores que a minha, e eu gostaria de lhe manifestar a minha profunda admiração.

— Sem querer ser chato, parece-me que quem tem prioridade sou eu — disse Jonas Salk. — Sou protagonista de uma das maiores injustiças que já foram cometidas. Como sabem, inventei a vacina contra a poliomielite, e ainda hoje sou celebrado por isso. Mas a pessoa que desenhou a campanha de vacinação permanece na obscuridade. É tempo de darmos o mérito a quem o tem e, na pessoa do sr. almirante Gouveia e Melo, homenagearmos todos os burocratas que planearam operações de vacinação.

— Mais devagar, Jonas! — bradou Camões. — O primeiro a encontrar-se com o sr. almirante Gouveia e Melo serei eu. Terminei agora uma errata aos “Lusíadas”, com um canto novo que relata exclusivamente as façanhas desse herói. Foi difícil, porque quase nada rima com covid.

— E eu irei contigo, Luís Vaz. — Era Fernando Pessoa que falava agora. — Emendei a “Mensagem” e agora sim, está terminada. Vejam o que vos parece esta alteração: “E mais que o mostrengo, que me a alma teme/ E perante ele de medo congelo;/ Manda a vontade, que me ata ao leme,/ Do sr. almirante Gouveia e Melo!”

— Bravo! — gritou D. João II.

Nisto, o gabinete de São Pedro iluminou-se. E todos os presentes se ajoelharam perante a figura que chegava. Era Nosso Senhor Jesus Cristo.

— Pedro — disse ele —, como sabes, fiz anos na semana passada. Não consigo imaginar melhor presente do que uma reunião a sós com o sr. almirante Gouveia e Melo.

— Claro, Senhor. Farei todos os possíveis. Vou ver com a secretária dele, pode ser?

— Naturalmente. Não me passa pela cabeça impor-Lhe a minha presença. Só se e quando ele tiver disponibilidade — concordou o Messias.»


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