17.10.09

Dundo, memória (anti) colonial











(N.B, - Este texto foi escrito pelo meu amigo Jorge Martins que mo enviou para publicação neste blogue. Que fique como incentivo para que não percam o filme de Diana Andringa, que eu só verei na próxima 6ª feira.)

Começou o doclisboa 2009. Folheando o programa, encontramos, como de costume, muitos motivos para fazer uma aliciante calendarização de visionamentos até ao dia 25. E, para quem acha sempre que a juventude não adere a projectos culturais de qualidade, basta dar uma saltada à Culturgest, por exemplo, para constatar que o doclisboa ganhou definitivamente a juventude.

No que aos meus interesses diz respeito, bastou dar uma breve vista de olhos aos filmes da competição portuguesa para me deter em três deles, a saber: 48, de Susana de Sousa Dias; Com que Voz, de Nicholas Oulman e Dundo, Memória Colonial, de Diana Andringa. O primeiro procura, a partir de fotografias de ex-prisioneiros políticos, revisitar a ditadura portuguesa e “mostrar os mecanismos através dos quais um sistema autoritário se tentou auto-perpetuar”.

O segundo propõe-se fazer uma biografia do compositor dilecto de Amália Rodrigues, Alain Oulman, perseguido pelo salazarismo e exilado em França, com um motivo acrescido de interesse pessoal, que reside no facto de o biografado ter ascendência judaica, o que poderá permitir uma eventual leitura de influências judaicas no fado, a dita canção “nacional”.

Finalmente, Dundo, o documentário de Diana Andringa. Fui vê-lo na sessão de estreia (repete no dia 23 na Culturgest às 18.30h) e queria deixar aqui as minhas impressões. Ao contrário dos seus anteriores trabalhos, por exemplo Geração de 60; Aristides de Sousa Mendes, o Cônsul Injustiçado; Era uma vez um Arrastão; As Duas Faces da Guerra, onde a autora revelou determinantes preocupações sociais e políticas, este projecto é mais intimista.

A sua revisitação às raízes é contada na primeira pessoa. Pode detectar-se uma continuidade da ideia do último filme, As Duas Faces da Guerra (2008), na medida em que reequaciona a relação colonizador/colonizado. Perante um certo desencanto pela perda de um mundo “nostálgico” do tempo da soberania portuguesa, um dos entrevistados no actual Dundo apela para o regresso dos ex-colonizadores, agora que já são reconhecidos como pessoas.

No entanto, o fio condutor de Dundo é uma tentativa de apaziguamento interior de Diana Andringa, que, tendo como interlocutora a sua filha Sofia, procura fazer as pazes com um sentimento de culpa ilegítimo de uma criança que viveu anos felizes em Angola, situação tributária dos privilégios do colonizador branco e de “apartheid” disfarçado, mas que Diana só percebeu mais tarde. Regressou ao hospital onde nasceu e à casa onde viveu parte da sua juventude plena de boas recordações e espantou os seus interlocutores com a sua brancura africana. E, confesso, tenho uma enorme inveja de ver o brilhozinho nos olhos de todos os portugueses que viveram em África, sobretudo em Angola, quando recordam esses anos.

Diana afirma que não consegue dissociar-se da sua dupla (múltipla) identidade angolana e africana. Como Amin Maalouf, nunca se despojou das suas raízes africanas, nem deseja tal coisa. E é essa a maior riqueza humana: a multiplicidade de pertenças. Diana Andringa nunca terá que optar, mas o Dundo ocupa-lhe um sentimento maior, como é natural. Vê-se isso claramente quando se convive com ela e plenamente no filme. O que me pareceu foi que a jornalista, a activista, a antifascista, a anti-colonialista, conseguiu com este documentário “regressar” finalmente de Angola a Portugal, em paz consigo própria, uma vez que a primeira saída lhe ficara amargurada. Este segundo regresso do Dundo terá constituído a sublimação de uma culpa que não teve do colonialismo de que usufruiu, mas que combateu assim que teve consciência dele. Mas, uma coisa é saber isso, outra coisa bem diferente é fazer as pazes consigo mesma, apaziguar o seu alter-ego e concluir que agora já pode regressar pacificamente a Portugal, deixando uma segunda marca da sua presença no Dundo. Diana Andringa passou o testemunho à sua filha e encerrou um capítulo da sua vida, que estava aberto há décadas. Um documentário a não perder, preferencialmente ao lado de ex-residentes no Dundo.

1 comments:

Anónimo disse...

Não verei o filme de Diana Andringa. Mas o texto de Jorge Martins fala-me de algumas coisas que julgo também já ter percebido, por mor dos anos que por aqui levo.

Ao falar com os brancos, descendentes de portugueses, que aqui nasceram e por cá continuam, fico sempre com a impressão de que se sentem em pátria de exílio. E que sempre tiveram uma difusa consciência disso, mesmo quando detinham o poder. Mesmo sem o reconhecer, não se sentem nem angolanos nem portugueses. Habitam um espaço de encontro que contudo não tem existência física.

Do lado nativo, embora menos visível e com tendência a extinguir-se, existe também, principalmente da parte das gerações mais velhas dos principais centros urbanos, principalmente do sul, um certo sentimento de já não ser africano e simultaneamente não ser ainda outra coisa.

Já ouvi a alguns dizer que os europeus levaram a África com eles.

nelson anjos