«Gouveia e Melo disse, na semana passada, não querer "emprestar a farda” e a sua “autoridade” a extremos. O problema começa aqui: Gouveia e Melo não pode emprestar a farda a ninguém. Ela não é sua. É do Estado e foi-lhe emprestada na condição de não ser politicamente transacionável. Nem para os extremos, nem para a moderação.
O problema de Gouveia e Melo não é ser um ex-militar, é ter feito a sua pré-campanha fardado, pondo a Armada a promover a sua imagem com fins políticos. Desdobrando-se em inusitadas entrevistas, reportagens e aparições nas televisões que extravasavam claramente as suas funções. Antes e depois de ter sido nomeado Chefe do Estado Maior da Armada. E ter alimentado a ideia de uma candidatura quando ainda era militar no ativo.
Nunca achei que Gouveia e Melo fosse um extremista. As poucas entrevistas que deu, a sua proximidade com a maçonaria e os apoios que vai somando, em que destaco Isaltino Morais e Alberto João Jardim (como aprendemos com Cavaco Silva, o político “austero” tende a encontrar as piores companhias), não o indiciam. A direita está lotada, a esquerda está minguada e o almirante sabe onde está o voto que lhe pode dar a vitória: no PSD, com um péssimo candidato, e no PS, com candidato nenhum. Para quê criar anticorpos?
Colocando-se ao centro sem ter os apoios do centrão, tem as vantagens de estar dentro e de estar fora do “sistema”. A ausência de rasto permite um luxo que qualquer candidato desejaria: decidir o lugar onde fará a campanha. Que candidato desdenharia desse invulgar benefício da virgindade?
Compreendo e até tenho defendido a vantagem de, no atual cenário, um Presidente não ter filiação partidária. O descrédito dos partidos não exige que sejam tratados como um problema, mas exige que se apercebam do problema, e não faz mal que levem um abanão democrático. O bloqueio do nosso sistema partidário (cá e na maioria das democracias europeias) aconselha algum distanciamento do “árbitro”. E o cargo não tem de ser, como tem sido, feudo dos dois principais partidos políticos – o único Presidente sem partido acabou por criar um.
Também concordo com Henrique Gouveia e Melo quando diz que não se tem de ser político profissional para chegar a Presidente da República. Mas vou mais longe: não se tem de ser político profissional para ser político. Quem tem atividade cívica pública, que implica expor, ao longo do tempo, posições sobre o que se passa na comunidade, tem atividade política. E é isso, e não vir de fora da “classe”, que me inquieta em Gouveia e Melo: nunca teve atividade cívica. Dirão: não podia, era militar. É a vida. Teria sempre de fazer o seu percurso civil para ganhar o mínimo de currículo, sem precisar de ser profissional. Ter rasto cívico e posições escrutináveis. Com as devidas diferenças, não se chega a general sem ter feito a recruta.
A inexperiência e a incógnita são ainda mais perigosas quando Gouveia e Melo parece defender um perfil mais intervencionista do Presidente da República, ao ponto de defender o poder de demitir o governo quando haja “um desfasamento grave entre os objetivos-prática do Governo e a vontade previamente sufragada pelo povo”. Quando o governo não cumpra suas promessas. Uma avaliação totalmente subjetiva que não tem respaldo na nossa Constituição.
O que eu acho assombroso é que alguém que nunca teve qualquer tipo de intervenção cívica (já nem digo política) se ache preparado para nada mais, nada menos do que ocupar o lugar cimeiro da política. Assusta-me a inexperiência. Assusta-me a insegurança de termos um vencedor à partida sem sequer sabermos ao certo o que pensa. E, ainda por cima, sabemos que é volúvel: recuou na defesa do Serviço Militar Obrigatório e dos cortes nas despesas sociais para aumentar despesas militares quando percebeu que era impopular. Mas o que realmente me perturba é a soberba.
A soberba de alguém que quer começar a sua vida cívica pelo topo tem de estar associada a uma vaidade muitíssimo intensa. O que, em política, tem os seus perigos. Ao ver a capa da Revista da Armada, em que o ainda Chefe do Estado-Maior da Armada era comparado (seguramente com a sua autorização) a D. João II, obtemos um pequeno vislumbre desse perfil.
A humilhação pública a que sujeitou os seus subordinados (que, bem ou mal, viriam a ser castigados pela disciplina militar) em frente a câmaras de televisão (seguramente convocadas para o espetáculo), enquanto se tinham de manter em disciplinado silêncio, traça os limites do que está disposto a fazer pela sua imagem. Sei quase nada sobre ele. Mas esse dia, apesar de até ter criticado aqueles homens, foi determinante para a avaliação que posso, com tão pouco que nos deu, fazer do seu perfil. Até porque corresponde a um padrão: já o fizeram num centro de vacinação, com os seus funcionários. Sou dos que acha que um líder critica os que lidera dentro de portas, defende-os fora delas.
Se há coisa que este tempo dispensa, é mais um egomaníaco na política. Já nos basta o que acha que foi Deus que determinou a sua missão política.»
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