8.6.22

Olhem para o que digo...

 


«António Costa aproveitou um Encontro Nacional de Associações Juvenis para lançar às empresas portuguesas um desafio: “um aumento de 20% do salário médio no país”. Mesmo sendo o “salário médio” um indicador melindroso num país de grandes desigualdades (se subir muito o salário de um gestor isso faz aumentar o salário médio sem que subam os outros salários), o que surpreende é que o primeiro-ministro faça esta exortação a outros ao mesmo tempo que rejeita fazer a sua parte. Por um lado, nos salários cujo valor depende legalmente da decisão política do Governo e da maioria absoluta que o sustenta – o salário mínimo e os salários da administração pública -, que estão neste momento a perder valor real porque a inflação os consome. Por outro, nas grandes fontes legais de desequilíbrio de rendimentos em Portugal. De facto, se debatemos o salário real, é impossível fazê-lo sem ter em conta três aspetos: a inflação, as desigualdades salariais e a lei laboral. O que tem feito o Governo a este propósito?

Sobre a proteção dos rendimentos relativamente à inflação, não há muito a assinalar, antes pelo contrário. O aumento de 0,9% para a administração pública e a recusa de um aumento intercalar do salário mínimo significa empobrecimento, aumento da desigualdade e menor peso dos salários no PIB.

Sobre desigualdades salariais, elas têm vindo a aumentar e a pandemia agravou o problema em duas vertentes: aquelas dispararam entre trabalhadores e gestores das mesmas empresas, por exemplo, com casos em que os gestores recebem mais de 250 vezes o que ganha um trabalhador; e aumentaram as desigualdades de género (11,4%, de acordo com os últimos dados). A proposta de criar leques salariais de referência, medida que tem sido discutida em vários países, continua a ser um tabu por cá.

Sobre a lei do trabalho, as alterações de 2012 que foram responsáveis por uma imensa transferência de rendimento do trabalho para o capital permanecem nos seus aspetos essenciais. Com efeito, o Governo aprovou recentemente uma “Agenda para o Trabalho Digno” em que continua a deixar intocados os principais mecanismos de degradação salarial e de prolongamento do horário de trabalho que foram inscritos na lei no período da troika: o corte nos dias de férias, o corte no valor das horas extra para metade, o corte nas compensações por despedimento, que é também um mecanismo de precarização. É certo que a proposta anunciada tem medidas positivas: a previsão de uma presunção de contrato de trabalho para os trabalhadores de plataformas digitais, a exigência de transparência na gestão algorítmica da atividade, um melhor enquadramento do outsourcing, por exemplo. Mas que agenda para a dignidade do trabalho é esta em que não se mexe em normas aviltantes como a que impede um trabalhador de contestar um despedimento ilícito se não devolver ao patrão a compensação que é sua por direito? Ou em que nada se estabelece sobre trabalhadores por turnos, que são já cerca de 800 mil em Portugal, em cada vez mais setores de atividade, e tão desprotegidos pela lei? Ou que continua a permitir que haja convenções coletivas (em grande medida estagnadas por força de regras legais e que seriam o instrumento por excelência para aumentar salários) com conteúdos piores que a lei geral?

O Governo quis separar as propostas para o “trabalho digno” do debate sobre a “política de rendimentos”, atirado para outubro, ao mesmo tempo que projeta no espaço público grandes declarações. Só que separar os debates, por mais jeito que dê na gestão da agenda política, é um artifício. Não há dignidade do trabalho sem cuidar de rendimentos dignos pelo trabalho prestado. E eles não surgem em resultado de proclamações ou de desejos, mas de escolhas e de decisões concretas que o Governo, infelizmente, tem vindo a rejeitar.»

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