14.4.20

Pandemia e o empacotamento de velhos



«As notícias já não são bem notícias, são uma espécie de roleta russa que nos vai revelando o número dos que não tiveram sorte. O mundo acorda e deita-se à espera de melhores dias que tardam. As pestes matam e corroem a alma aos que ficam.

Entretanto, nas águas negras do infortúnio, as televisões encontram o seu melhor mundo. Por ali passam todos os números da desgraça. Muitas vezes com rostos. Outros com os números que falam de óbitos e de mais casos, incluindo os que estão nos cuidados intensivos e até dos recuperados. Os donos dos microfones têm o poder de nos dizer o que eles nos querem dizer.

Mas também, diga-se em abono da verdade, que se não fosse a covid-19 os velhos não existiam. Estavam nos tempos correntes empacotados em lares (estranha palavra que quer dizer atualmente despensa, mas que na origem significava as divindades protetoras da família – ainda me lembro de na infância se referir a ir para Penates, outros deuses protetores da casa), à espera que num fim-de-semana um familiar à vez os fosse visitar. Um velho, num mundo de sucesso, vale pouco. É uma canseira ter de pagar a um lar para ter um velho, pois num mundo de lufa-lufa um velho não dá lucro, apenas prejuízo. Num mundo dirigido pela implacável mão justiceira do mercado, o velho é uma mercadoria que nem sequer dá para o inventário.

A covid veio mostrar que afinal o mercado tem de ser ajustado, pois os velhos afinal têm um valor que não é completamente residual, antes constituem um nicho de mercado.

Ao morrerem como tordos são notícia porque, apesar do frenesim da vida, as famílias ainda se lembram dos velhos empacotados ao pé de outros velhos que aguardam pacientemente que chegue o dia de alívio dos que os depositaram em casas de repouso. As televisões sabem quanto vale em termos mediáticos a morte dos velhos em tempos de covid.

Na verdade, a morte de um velho, em tempos normais, não é grande notícia, não passa do esperado.

O que pode estar a acontecer é que ainda não se tenha extinguido a memória do familiar encavalitado noutros velhos em casas de repouso. E a televisão vai dando conta da via-sacra dos velhos infetados a caminho de onde os queiram, pois nem sempre se consegue empacotar nas devidas condições um velho, e muito menos um velho com covid.

Nestas circunstâncias, é sempre algo de muito apetecível verificar como desempacotar velhos que já não podem continuar a repousar nos lares onde estavam a aguardar a visita do familiar, muitas vezes escolhido à sorte entre os tais familiares.

Os espectadores adoram ver estas coisas em direto, falta claro o cheiro a sujo, a urina, mas o velhinho ali está a passar um mau bocado porque, afinal, não repousava na casa do repouso; apodrecia.

A pandemia trouxe para a tona dos dias o quanto valem os velhos em termos mediáticos. O seu valor, que andava muito por baixo, subiu um pouco.

Se não fosse a cegueira do mundo, talvez os que não são velhos tivessem tempo para pensar que um dia chegará a casa do empacotamento. A pandemia confina, fecha, mas pode abrir os olhos. É certo que os olhos só veem o que querem, mas se olharem e virem no presente o futuro aprenderão muito. A cegueira é a arma dos donos do tempo frenético. Outro tempo virá. O que mais tem o tempo é tempo; os velhos, não.»

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