19.4.25

O desprezo e o incómodo dos partidos pela sua história

 

Arquivo Ephemera

«Tenho passado as últimas semanas a trabalhar numa grande exposição sobre um dos fundadores da nossa democracia, Francisco Sá Carneiro. E mais uma vez posso testemunhar a dupla maldita destes últimos 50 anos de liberdade, o desprezo e o incómodo dos partidos políticos portugueses pela sua história e, por essa via, pela história dos anos de liberdade dados pela revolução de Abril e os anos de construção de democracia dados pelos fundadores, um dos quais Sá Carneiro. Não é difícil compreender que, para além dos defeitos da ligeireza, superficialidade e ignorância instalada, com o seu repúdio da complexidade que vem com a história, há uma correlação entre a incomodidade e o desprezo pela própria história. Isto é válido para o PSD, PS e PCP.

Não me estou a referir aos historiadores e aos militantes ou ex-militantes que escreveram memórias, mas ao desprezo objectivo das direcções partidárias não só pelo seu património arquivístico, que ou menosprezam ou escondem, como pelas suas publicações sem qualidade, mal-amanhadas e censuradas. Todas as técnicas clássicas de manipulação da verdade são usadas, desde a mentira, à omissão da verdade até à sugestão de falsidade. O caso do PCP é clássico, não só pela ocultação dos arquivos, como pela sistemática manipulação de uma história “oficial” que não suporta qualquer critério de verificação histórica. Não é preciso ir mais longe do que notar que a sua imprensa oficial, como é o caso do Em Frente!, publicado pela sua direcção legítima e que substituiu o Avante! no período do Pacto Germano-Soviético, nunca seja mencionado. A razão não é a legitimidade do jornal como órgão do PCP, mas sim o que lá vem escrito sobre a colaboração da Alemanha nazi com a URSS, até à invasão de 1941.

O PS é, de todos os partidos que mencionei, aquele que é menos dependente de uma história “oficial” e, por isso, está mais à vontade, não só para ter conservado muitos materiais na Fundação Mário Soares, como para aceitar mais controvérsia sobre a sua história e personalidades. Com facilidade aceitará, mesmo de forma irónica, o seu cartaz de 1975 que diz “PS, partido marxista” ou o Coro de S. Carlos a cantar o hino do PS… a Internacional.

O PSD não tem idêntico à vontade, em grande parte porque dificilmente aceita os seus documentos fundadores, que lhe são particularmente incómodos no plano do conteúdo, e que menoriza como sendo apenas uma adaptação retórica ao radicalismo de 1975, para impedir a ilegalização do partido. Já tive ocasião de dizer como isto é insultuoso para a memória e a acção de Francisco Sá Carneiro, que sabia muito bem o que queria muito antes do ano de 1975. Antes do 25 de Abril, em vários escritos, e numa célebre entrevista a Jaime Gama da República, explicou o seu programa em termos claros e nunca o alterou até à sua morte em 1980. Afirmou-o sempre, em textos programáticos do PPD, em discursos partidários e parlamentares, na tentativa muito séria para entrar na Internacional Socialista, na preocupação de nunca colocar o PPD/PSD como cabeça de uma frente de direita, mesmo com a inclusão dos Reformadores na Aliança Democrática genuína, a da Bayer.

Sá Carneiro era anticomunista, e actuou como anticomunista, mas não era anti-socialista, mesmo quando combatia o PS. O PPD, e depois o PSD, na sua prática política combatia sem hesitações o PCP, no 25 de Novembro, na atenção aos retornados, na sua preocupação com a manipulação informativa, com o papel das pequenas empresas, com a liberdade de imprensa, informação e organização, e tudo isto faz parte da “história não escrita” com plena participação de Francisco Sá Carneiro. O mesmo acontecia com uma preocupação central que era a institucionalização de uma democracia plena, civil, assente nos partidos e no voto popular e não em “pactos” que davam aos militares poderes fora da democracia.

Mas tudo isto não afectava a sua identidade política que tinha três fontes, o liberalismo político, o personalismo cristão e a social-democracia, cada uma correspondendo a um dos elementos do seu pensamento, a liberdade de homens como Herculano ou Garrett, que lutaram com armas na mão contra os absolutistas, a doutrina social da Igreja e uma interpretação da pessoa humana na filosofia de Emmanuel Mounier, e a social-democracia de Bernstein e Kautsky, do Programa do SPD de Bad Godesberg, no seu tempo a de Olof Palme e Willy Brandt. É por isso que em todos os documentos iniciais o PPD é colocado como partido de “centro-esquerda”.

É incómoda? A história não é amável com a sua manipulação.»


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