«Em janeiro, quando António Costa apresentou ao Parlamento Europeu as prioridades da presidência portuguesa do Conselho Europeu, Ursula von der Leyen agradeceu-lhe o destaque ao pilar europeu dos direitos sociais: “I want to thank António for his leadership and support on this issue”. Perguntei-me por estes dias onde está a liderança portuguesa que von der Leyen saudou, a propósito do recente caso das trabalhadoras processadas pelos empregadores por pedirem um horário de trabalho compatível com a assistência aos filhos – um direito que a lei portuguesa regulou em 2003. É que a conciliação entre o trabalho e a vida pessoal faz parte do dito pilar europeu.
A conciliação entre trabalho e vida pessoal serve, em primeiro lugar, para contribuir para o bem-estar de quem trabalha. Em segundo lugar, contribui de forma direta para o crescimento saudável e harmonioso dos filhos de quem trabalha, que os conduz a uma vida adulta mais funcional. É por isso que tantas vezes vemos este debate centrado nas trabalhadoras e trabalhadores com filhos. Em terceiro lugar, há alguns estudos que mostram que aumenta a fertilidade. Como aqui escrevi no mês de maio, a propósito do dia da mãe, segundo o Inquérito à Fecundidade do INE, de 2019, há 37% das mulheres com “fecundidade final esperada menor do que a desejada”. Independentemente de querermos promover nascimentos de crianças como um fim em si mesmo, podemos sempre querer ter uma sociedade em que as mulheres que querem ter filhos os possam ter.
Uma das formas de promover o tal equilíbrio é a flexibilidade de organização do trabalho, que pode consistir em tempo parcial ou em flexibilidade na escolha do local ou do horário de trabalho. Acontece que, em qualquer das três possibilidades de flexibilidade, Portugal está na cauda da União. E não na liderança.
A flexibilidade do local de trabalho é uma das partes mais interessantes da história. Acabámos de viver uma revolução à força, devido à pandemia, que obrigou muitas empresas a mudar a sua organização para incluir mais horas de trabalho em casa. Segundo dados do Eurofound, Portugal era, em 2015, um dos países da UE com menos trabalhadores em trabalho remoto: cerca de 10%, comparando com quase 15% na vizinha Espanha e longe dos quase 40% dinamarqueses, ou cerca de um terço suecos e holandeses. Estes dados sugerem que as empresas portuguesas estão menos bem preparadas – por razões ligadas à sua dimensão, cultura de gestão, ou setor de atividade – para aproveitar experiência radical da pandemia e implementar esquemas de trabalho mais amigos da vida pessoal. Convém não esquecer que o trabalho remoto está muito concentrado nas pessoas com maior nível de educação, que são quem tem profissões mais compatíveis com o dito. Já lhes chamei burguesia do teletrabalho. Um artigo recente na norte-americana The Atlantic vai mais longe e sugere que a fertilidade vai estar, no futuro, concentrada nas mulheres que conseguem trabalhar remotamente. Uma distopia que devemos evitar. Mas como?
O trabalho a tempo parcial, em Portugal, não pega. Segundo o Eurostat, em 2019 apenas 9% dos trabalhadores portugueses trabalhavam a tempo parcial, abaixo da média europeia de 22%. Há vários países com mais de um quinto dos trabalhadores a tempo parcial, como a Alemanha, a Áustria, a Bélgica. E há os Países Baixos, com 42%. O trabalho a tempo parcial pode ser uma má notícia, se é uma restrição, isto é, se os trabalhadores gostavam de trabalhar mais horas mas não conseguem. Em Portugal, quase metade dos trabalhadores a tempo parcial está nesta situação, mas nos Países Baixos são 7% e na Alemanha 10%. Quer isto dizer que há países onde muita gente trabalha a tempo parcial porque quer. E há outros onde poucas pessoas trabalham a tempo parcial e gostavam de trabalhar mais, mas não podem. Portugal está, infelizmente, no grupo da frente destes últimos, o que não é de espantar: num país de salários baixos, o tempo parcial é uma opção pouco atrativa para a maior parte das pessoas.
Resumindo: trabalho remoto é privilégio das pessoas mais educadas (esperando que as empresas portuguesas aproveitem esta onda) e tempo parcial não é para os salários portugueses. A flexibilidade de horário é, por isto tudo, fundamental no nosso país, porque permite conciliar a vida pessoal com a profissional sem sacrificar o rendimento. Segundo o Eurofound, em 2015, cerca de 87% dos trabalhadores portugueses tinham horários decididos pelo empregador, sem qualquer possibilidade de alteração. Quase 3% tinham possibilidade de escolha entre horários pré-determinados pelo empregador. Pouco mais de 10% tinham acesso a horários flexíveis ou a possibilidade de determinar o seu horário de trabalho de forma autónoma. Mais rígidos, só a Lituânia, o Chipre e a Bulgária. Na União Europeia, apenas três em cada cinco trabalhadores trabalham num horário decidido exclusivamente pelo empregador e em países como Suécia, Dinamarca, Finlândia e Países Baixos, não chega a metade dos trabalhadores.
Quem são, em Portugal, as pessoas que queriam ter flexibilidade e não têm? Numa tese de mestrado defendida recentemente na minha faculdade, orientada por mim e pela minha amiga Marta C. Lopes (professora na madrilena Universidade Carlos III) a jovem economista Catarina Pintassilgo analisou com cuidado 612 pareceres da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (quase dez mil páginas!). Como uma empresa só pode recusar um pedido de horário flexível ou tempo parcial com parecer favorável desta comissão, estes pareceres são uma fonte de informação importante. Os pedidos confirmam que os trabalhadores portugueses querem flexibilidade, não tempo parcial: 93% dos pareceres analisados analisam pedidos de horário flexível. Ou melhor: as trabalhadoras. Mais de 80% dos pareceres dizem respeito a mulheres. A maioria trabalha nos setores de saúde, apoio social e retalho (lembram-se do centro comercial?) Nos casos analisados pela Catarina, a CITE deu razão às trabalhadoras em 76% dos casos e quase todas as recusas foram devidas a razões processuais (por exemplo, falta de informação). A CITE também fez recentemente saber que, dos 1270 pareceres emitidos em 2019, 80% foram favoráveis ao trabalhador. Ou seja: na esmagadora maioria dos casos, segundo a CITE, os empregadores não tinham razões atendíveis para recusar os pedidos das trabalhadoras.
Eu percebo que isto é um desafio. Portugal é um país de micro e pequenas empresas, com equipas pequenas, sem grande margem de manobra financeira. Admito que a CITE não acerte sempre e que esteja a forçar algumas empresas a fazer o impossível. Mas, se dá razão a quatro em cada cinco trabalhadoras, é porque há má vontade da parte das empresas. Com que direito pedem às trabalhadoras que se adaptem a tudo, se não estão disponíveis para se adaptar a nada?»
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