«Será que o destino que espera Odessa, a “Pérola do Sul” é o mesmo que foi destinado à gloriosa cidade de Alepo durante a guerra da Síria?
Quando o Presidente russo Vladimir Putin lançou os primeiros ataques aéreos na Síria no outono de 2015, o conflito sírio estava no seu quinto ano. Os rebeldes armados, que se opuseram à brutal repressão do Presidente sírio, Bashar al-Assad, contra os civis, estavam a ganhar terreno. O ISIS estava em ascensão e Assad tinha reconhecido que o seu exército estava a recuar.
Nos meses e anos vindouros, a potência aérea russa não só ajudou a reverter o curso da guerra, como fez pagar um custo extraordinariamente elevado à população civil síria. A intervenção militar de Putin — incluindo a ajuda ao seu aliado Assad no cerco de áreas detidas pela oposição em Alepo e o bombardeamento de áreas civis — acabou por ajudar Assad a reconquistar território e a permanecer no poder.
Poucas horas após a invasão russa da Ucrânia, um novo mural pôde ser visto ao lado de uma casa bombardeada na cidade síria de Binnish. Mostrava um mapa da Ucrânia, pintado com as cores daquele país, sob ataque de um grande urso castanho russo. O muro era o que restava de uma pilha de escombros espalhados pelo chão em redor dos destroços do edifício: um legado da campanha aérea russa na guerra civil da Síria.
A intervenção militar da Rússia contribuiu para um sofrimento indescritível de milhões de civis sírios. A maior parte das suas acções de apoio ao exército sírio redundou num elevado número de mortos civis, a fim de quebrar o moral da população. Como resultado disso, conseguiram desmembrar a oposição síria. As forças sírias e russas sitiaram várias cidades na Síria para as fazer renderem-se, mantendo os civis reféns à medida que as forças avançavam sobre os combatentes rebeldes. Desde o subúrbio de Ghouta, em Damasco, até à milenar metrópole comercial de Alepo, as bombas russas atingiram hospitais, escolas, mercados e filas de pessoas à espera de comprar pão. Os seus aviões ajudaram a impor um cerco sírio no terreno, reduzindo as pessoas a fantasmas refugiados nos escombros e nas caves de edifícios esventrados. Agora o mesmo está a acontecer em Mariupol.
Alguns dos bombardeamentos mais intensos da Rússia na Síria ocorreram em 2016 durante a batalha por Alepo. A campanha provocou crimes de guerra, disse a Human Rights Watch num relatório de dezembro de 2016, referindo: “Os ataques aéreos pareciam muitas vezes ser imprudentes, visavam deliberadamente pelo menos instalações médicas, e incluíam o uso de armas indiscriminadas como munições de fragmentação e armas incendiárias”. A Rússia foi responsável por múltiplos crimes de guerra durante a campanha de 11 meses em Idlib.
No processo, cidades inteiras foram devastadas. Os ataques russos fizeram cerca de 24.743 vítimas civis, de acordo com dados da ONG Airwars, da Rede Síria de Direitos Humanos, do Observatório Sírio dos Direitos Humanos e do Centro de Documentação sobre Violações. Um assalto igualmente letal ocorreu na província noroeste de Idlib. Instalações civis, tais como hospitais, escolas e mercados, foram repetidamente alvo de uma grande ofensiva lançada em 2019, que de acordo com grupos de direitos humanos, resultou na morte de pelo menos 1600 pessoas e na deslocação de mais 1,4 milhões.
Tal como na Síria, os aviões russos estão a utilizar uma grande variedade de munições não guiadas, incluindo mísseis balísticos de curto alcance, bem como artilharia pesada. Os russos empregam explosivos reforçados, bombas de fragmentação, e bombas penetrantes de betão, muitas vezes de 500 quilos. Usam ainda armas incendiárias bombas de fósforo, bombas de barril (cilindros de aço que ao explodirem libertam bombas e artefatos letais). Chegaram já à Ucrânia as bombas de vácuo, também chamadas armas termobáricas, uma das armas de guerra mais brutais que existe. As bombas estão cheias de mistura explosiva e química, o que provoca ondas de explosão supersónicas. Estas ondas podem incinerar tudo em seu redor, pois os explosivos sugam o oxigénio do ar circundante, gerando uma poderosa explosão. Segundo a Human Rights Watch, a aliança militar sírio-russa utilizou um cocktail de armas indiscriminadas, proibidas internacionalmente, sobre uma população civil prisioneira nas áreas sob assédio aéreo.
Tal como está a acontecer na Ucrânia, a Rússia usou sistematicamente a sua posição no Conselho de Segurança da ONU para se proteger a si própria e ao seu aliado em Damasco das acusações face a estes crimes contra a população civil. A Rússia opôs-se, pelo menos 10 vezes, a resoluções contra a Síria. Opôs-se também, em 2017, à renovação do mandato da organização das Nações Unidas para um inquérito, a ser conduzido em conjunto com a Organização para a Proibição das Armas Químicas (OPCW). Em 2020, Moscovo vetou um projecto de resolução que asseguraria a prestação continuada de ajuda humanitária através da fronteira síria, sem a aprovação do governo sírio. Este foi o décimo quinto veto da Federação Russa e o nono da China no contexto da guerra da Síria.
O Kremlin negou repetidamente acusações de ataques indiscriminados contra civis na Síria. Tanto na Síria como na Ucrânia, a Rússia e os seus aliados fizeram das comunidades civis um alvo preferencial, atacadas nos lugares onde as pessoas comuns vão em busca de cuidados médicos, educação, e alimentos e outras necessidades. Apontar deliberadamente para alvos civis é ilegal à luz do direito internacional, mas pode ser eficaz. Espalha o terror, mina o moral dos combatentes, e destrói a comunidade de que aqueles dependem para o seu apoio logístico e moral.
Tal como na Síria, a Rússia concordou com corredores humanitários para Mariupol da Ucrânia, apenas para os atacar. A Rússia anunciou repetidamente vários “corredores humanitários” que permitiriam a passagem segura dos civis e dos rebeldes para fora das zonas de combate. Na Síria, os membros da oposição rotularam-nos de “corredores da morte”. As exigências da ONU no sentido de se encarregar dos corredores, foram largamente ignoradas. Na Síria, a Rússia anunciou por vezes os corredores unilateralmente sem coordenação com organizações internacionais como as Nações Unidas — o que significava que não os podiam controlar. Os corredores eram por vezes abertos por períodos demasiado curtos para serem úteis, eram inviáveis ou mesmo levavam civis para áreas sob o controlo das forças militares de que se escondiam.
Os ataques a civis tornaram-se um dos vetores principais da “russian way of war” de Putin — uma violação flagrante do Direito internacional Humanitário e uma inversão das leis da guerra: a limitação da acção militar e a completa separação entre civis e militares.»
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