«Pela primeira vez, um chefe de governo promoveu diretamente uma criptomoeda específica. Pela primeira, um chefe de governo está a ser investigado por uma acusação de fraude por causa disso mesmo. Como não podia deixar de ser, o estreante é Javier Milei, o libertário que preside aos destinos da Argentina. O episódio retrata bem como governa – despreocupado com os efeitos dos seus atos –, para quem governa – um círculo próximo que beneficia diretamente das suas ações – e em que se apoia o seu governo – o burburinho caótico das redes sociais e canais de informação de amigos domesticados.
Apenas três minutos depois da sua criação, Milei promoveu uma memecoin junto dos quase quatro milhões de seguidores que tem na rede X. Avalizando a sua credibilidade, indicou que “este projeto privado se dedica a fomentar o crescimento da economia argentina através do financiamento de pequenas empresas e empreendimentos argentinos”.
A $Libra, era esse o nome da memecoin, teve um crescimento fulgurante, chegando aos 4500 milhões de dólares de valorização em apenas três horas. Foi sol de pouca dura. Nove dos criadores da $Libra, detentores de 87% das moedas virtuais, venderam de uma vez o valor que tinham e o valor da memecoin colapsou, tirando todo o dinheiro investido. Pelo menos 5000 investidores perderam mais de 100 milhões de dólares. Seis horas depois da sua publicação original, Milei apagou o tweet e, perante o crescente ultraje e ruído criado pelo seu apoio a um esquema deliberadamente fraudulento, respondeu que “não conhecia os detalhes do projeto”.
Sem valor subjacente e com muito menos mecanismos de controlo, segurança e estabilidade que criptomoedas consolidadas como a Bitcoin, as memecoins são um subproduto altamente volátil e especulativo, dependendo da ligação a uma figura pública com elevada popularidade que lhes dê notoriedade, e, acima de tudo, credibilidade. É por isso que o papel de Milei, sem o qual esta memecoin seria uma das largas centenas ou milhares de ativos virtuais que nunca chegam a ter destaque, é tão central nesta fraude.
FUGA ESTREITA
Apesar de passar a ideia de que quer ser interesse em ser investigado, a sua via de fuga é estreita, para não dizer impossível. O nome da moeda ($Libra) é uma recriação do nome do seu partido, “Liberdade Avança”, a promoção usa o mesmo slogan da sua campanha, e o principal cérebro da operação foi um dos seus assessores económicos, tendo reunido com Milei poucos dias antes do lançamento da criptomoeda. Ninguém promove um projeto, três minutos depois de este estar disponível, sem o conhecer previamente e a ele estar ligado.
O momento que se seguiu, a tentativa de contenção de danos políticos, conseguiu ser ainda mais delirante do que a entrada tresloucada num projeto que cheirava a fraude a quilómetros de distância. Mesmo tratando-se de uma entrevista combinada, e com as perguntas validadas e anotadas pela sua mulher e pelo consultor político, o desastre foi total.
Começa logo, pelo amadorismo com que a televisão, propriedade de um dos seus principais apoiantes, deixou visível na net a versão integral da entrevista, onde o jornalista confessa a forma amigável e combinada como tudo se iria desenrolar. Mesmo assim, as respostas foram tão inconvenientes, que o referido consultor teve de interromper a meio, indicando que estava a ir por caminhos que poderiam dificultar a sua possível defesa perante a justiça argentina e norte-americana.
A denúncia contra Milei, que está a ser analisada por uma juíza federal argentina, acusa-o de fazer parte de uma associação ilícita, fraude e violação dos deveres de um funcionário público por violar a Lei de Ética Pública. O advogado, que se imagina será o primeiro de muitos nos próximos dias, diz que o golpe “foi realizado através de uma operação conhecida como rug pull, que ocorre quando os desenvolvedores por trás de um projeto lançam um token e atraem investidores para aumentar seu valor, depois se retiram abruptamente e levam o dinheiro”.
DIZ QUE É IRRESPONSÁVEL, NÃO DESONESTO
A tudo isto, Milei começa por dizer “não promovi, difundi”, uma curiosa variação semântica para dizer o mesmo. Depois, diz que a conta que usou é a privada e não é oficial, caminho complicado quando todas as suas principais propostas e medidas políticas são anunciadas nessa mesma conta. Por fim, diz não conhecer os detalhes e desconhecer o funcionamento das criptomoedas, sendo apenas um “fanático pela tecnologia” sem conhecimento. Isto vindo de quem, ainda há quatro anos, ganhava a vida vendendo cursos e palestras sobre criptomoedas.
Noutra tirada, explicou que encara o assunto como tudo na sua forma de ver o mundo: “se vai ao casino e perde dinheiro, queixa-se de quê?” Só que as regras num casino são conhecidas e não é costume o proprietário vender todos os ativos a meio do dia e todos os clientes ficarem sem o dinheiro. Só que regras estáveis, informação transparente e equitativa, igualdade de oportunidades, é tudo o que estes libertários desprezam. A liberdade em que acreditam é a da selva.
EMBARAÇO PARA OS FÃS NACIONAIS DE MILEI
Corruptos na política argentina, seja à esquerda ou à direita, não são uma novidade. A grande diferença é que Javier Milei é coerente com a sua ideologia amoral e promotora da selvajaria social e económica.
Na última convenção, e depois de hesitações e dissimulações, a Iniciativa Liberal foi mais clara na aproximação ao presidente preferido de Trump. Aquele que melhor sintetiza a extrema-direita do século XXI: autoritária, antissocial e libertária. Na realidade, a aliança entre liberais e autoritários de direita não é nova. Hayek tinha simpatias por Salazar e os Chicago Boys foram fundamentais para política económica de Pinochet. A ditadura (ou o caos social que provoca o desnorte político, como aconteceu na Argentina) torna mais fácil a imposição de políticas antissociais. Que até podem ter resultados passageiros (assim aconteceu na ditadura chilena), mas que não deixarão de ser pagas de forma brutal na crise seguinte.
Esta saída do armário não corresponde, como li, a uma guinada à direita. O liberalismo social da IL sempre foi positiço. O económico sempre se ficou, no essencial, pela descida de impostos e privatização de serviços públicos. Ninguém se lembra dos atuais dirigentes da IL nas lutas pela igualdade, antes da fundação; e nunca os vimos na linha da frente contra monopólios privados e pelo papel regulador do Estado. É um partido tendencialmente libertário, bem diferente do liberalismo, historicamente centrista e moderado. As declarações de amor a Milei, que agora voltarão a ser mais tímidas, demonstram-no. O liberalismo da moda, que a IL representa, é como a criptomeda de Milei: um engodo de curta duração.
NOTA: Deixo para mais tarde, quando forem mais claras as alianças que se podem formar, a análise dos resultados das eleições alemãs.»
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