16.8.20

Da Cabreira a Chico Buarque



«Há dias, a Paula Ferreira escrevia sobre uma reunião familiar na Cabreira, iria estilhaçar-se um ritual de 30 anos? Eu e a tribo acoitados lá, consultei o espelho - mesmo sem beijos e abraços, sendo o geronte anfitrião, que mensagem transmiti? Coragem? Inconsciência? Fadiga do estado de alerta?

Pontos de interrogação cravados num só pano de fundo - o medo. Emoção mais do que legítima; indispensável! Quantos de nós teriam sucumbido ao apetite de outros animais se, após diálogo com botões inexistentes, não tivessem buscado refúgio num ramo de árvore? Pode o instinto de sobrevivência ser confundido com cobardia? Não creio, o oposto do medo não é a coragem, mas a inconsciência. Coragem é vencer o medo que nos revira as entranhas e seca a boca.

Ou seja, a pandemia não o inventou, ele acompanha-nos há muito tempo. É verdade que o medo do contágio transformou alguns em "agorafóbicos", o Mundo transformou-se numa ameaça constante, resignamo-nos a viver entre quatro paredes a nostalgia do impossível - o risco zero.

Deixámos a Cabreira, deixemos a pandemia. Em termos gerais, o medo é um carcereiro feroz e ambicioso. Fecha-nos numa pequena cela que se vai transformando numa ala inteira da prisão, de um T1 raquítico voámos para um Alcatraz alucinado. De um medo específico passamos a outro, de largo espectro, que vai proibindo a socialização e a aventura que é a vida. Até não haver apenas distanciamento dos outros, mas de nós mesmos; é da nossa identidade que abrimos mão.

Em "A Política do Medo", Al Gore citava uma frase lapidar de Brandeis: "Os homens temiam as bruxas e queimavam as mulheres". (Para variar, os bruxos homens tinham menos a temer.) Constatação histórica de um "talento" do medo - transformar-se em ódio. O que vive em nós e é temido, projecta-se no Outro, como os filmes nas paredes da aldeia no genial "Cinema Paraíso".

Em tempos de populismo eufórico e instáveis movimentos de massas, é caso para perguntarmos o que pode acontecer. Nas ruas, veja-se as recentes ameaças a cidadãos e cidadãs anti-racistas, e nas urnas, utilizadas por quem as despreza para aumentar o seu poder. Não precisamos de recuar cem anos para saber como terminam esses processos autofágicos.

Para não se trair, a Democracia assegura os direitos de quem anseia fazer dela uma sinistra paródia. Cabe-nos impedir que medos legítimos, manipulados por demagogos, se tornem álibis para autos de fé em que as chamas devorem a (imperfeita) Cidade construída no pós-25 de Abril.

Sob pena de voltarem a fazer sentido os versos do Chico (Saltimbancos, 1976) em plena ditadura,

"Alô, liberdade
Levante, lava o rosto
Fica em pé
Como é, liberdade...»

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