3.6.09

Não foram só maravilhas...


Como é do conhecimento geral, serão escolhidas no próximo dia 10 As Sete maravilhas de origem portuguesa» no mundo. Um numeroso grupo de historiadores, de várias nacionalidades, contestou a omissão de qualquer referência ao tráfico de escravos na informação associada aos monumentos, quando, nalguns casos, ela seria absolutamente relevante e obrigatória « para ser fiel à história e moralmente responsável».
Nesse sentido, lançaram uma Petição agora aberta ao público e que pode ser assinada aqui.

Texto da petição em português:

O concurso «As 7 maravilhas portuguesas no mundo» ignora a história da escravidão e do tráfico atlântico

Há mais ou menos vinte anos, vários países europeus, americanos e africanos vêm afirmando a memória dolorosa do comércio de africanos escravizados e valorizando o patrimônio que lhe é associado. Essa valorização se traduziu não somente na publicação de um grande número de obras historiográficas, mas também se expressou na realização de projetos como A Rota do Escravo iniciado pela UNESCO em 1994.

Apesar das dificuldades e das lutas políticas que envolveram a emergência da memória do passado escravista das nações europeias, americanas e africanas, de dez anos para cá a memória e a história do comércio atlântico passaram a fazer parte da memória pública de muitos países nos três continentes circundando o Atlântico. Em 2001, através da Lei Taubira, a França foi o primeiro país a reconhecer a escravidão e o tráfico atlântico como crimes contra a humanidade. Também na França, o 10 de Maio é doravante “dia nacional de comemoração das memórias do tráfico negreiro, da escravatura e das suas abolições”. Em 2001, em Durban na África do Sul, a Terceira Conferência da ONU contra o racismo inscreveu em suas declarações finais a escravidão como “crime contra a humanidade”. Em 1992, na Casa dos Escravos na Ilha de Gorée no Senegal, o Papa João Paulo II expressou suas desculpas pelo papel desempenhado pela Igreja Católica durante o tráfico atlântico. Bill Clinton, George W. Bush, e o próprio Presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva, condenaram publicamente a participação passada de seus países no comércio atlântico de africanos escravizados. Em 2006, Michaelle Jean, governadora geral do Canadá, escolheu o Castelo de Elmina em Gana para denunciar passado escravista. Em 2007, durante as comemorações do aniversário de duzentos anos da abolição do tráfico de escravos pela Inglaterra, foi a vez do ministro Tony Blair expressar publicamente seu profundo pesar pelo papel da Grã-Bretanha no comércio de africanos escravizados.

Em pleno ano de 2009, o governo de Portugal e instituições portuguesas como a Universidade de Coimbra, escolheram um caminho oposto ao descrito acima. No primeiro semestre desse ano essas instituições apoiaram a realização de um concurso para escolher as Sete Maravilhas Portuguesas no Mundo. Na lista das Sete Maravilhas a serem votadas pelo público na internet (http://www.7maravilhas.sapo.pt), constam não somente o Castelo São Jorge da Mina (Elmina), entreposto comercial fundado pelos portugueses em 1482, mas também a Cidade Velha (Ribeira Grande) na Ilha de Santiago em Cabo Verde, além de Luanda e da Ilha de Moçambique. Ao descrever esses sítios, a organização do concurso optou por omitir o uso desses lugares para o comércio de escravos. No texto descrevendo o Castelo São Jorge da Mina ou Elmina chegou-se ao cúmulo de afirmar que aquele local foi entreposto de escravos somente a partir da ocupação holandesa em 1637.

Para ser fiel à história e moralmente responsável, consideramos que a inclusão desses “monumentos” no dito concurso deveria ser acompanhada de informações completas sobre o papel deles no tráfico atlântico, assim como sobre seu uso atual. O Castelo de São Jorge da Mina ou Elmina, por exemplo, é hoje um museu que tenta retratar a história do tráfico. Trata-se de um lugar visitado por milhares de turistas de todo o mundo, entre os quais muitos representantes da diáspora africana que buscam ali prestar homenagem a seus ancestrais. O governo português, as instituições que apóiam o concurso e sua organização ignoraram a dor daqueles que tiveram seus antepassados deportados desses entrepostos comerciais e muitas vezes ali mortos. Seria possível desvincular a arquitetura dessas construções do papel que elas tiveram no passado e que ainda têm no presente enquanto lugares de memória da imensa tragédia que representou o tráfico transatlântico e a escravidão africana nas colônias européias ? Segundo as estimativas mais recentes (www.slavevoyages.org), Portugal e posteriormente sua ex-colônia, o Brasil, foram juntos responsáveis por quase a metade dos 12 milhões de cativos transportados através do Atlântico.

Em respeito à história e à memória dos milhões de vítimas do tráfico atlântico de escravos, viemos através desta carta aberta repudiar a omissão do papel que tiveram esses lugares no comércio atlântico de africanos escravizados. Convidamos todos aqueles que têm um compromisso com a pesquisa do tráfico atlântico de escravos e da escravidão a repudiar que essa história seja banalizada e apagada em prol da exaltação de um passado português glorioso expresso na suposta "beleza" arquitetural de tais sítios de morte e tragédia.

1 comments:

jpt disse...

Parte do sumo do texto (para além do catastrófico português, e não falo de grafias) tem alguma legitimidade: o intento de cristalizar a história portuguesa como uma gesta monumental é irritante e a-historiográfico. A outra face é pateta - o que se pede ali, que o governo português defina os termos dos concursos televisivos? [Será que "o próprio Presidente do Brasil" (para citar o surpreendente brasilocentrismo da petição) andou a reboque da TV (Globo ou outra) aquando da inflexão político-teórica de 2001?] Ou seja, passamos a vida a protestar com a interferência governamental nos orgãos de comunicação e depois queremos a regulação do conteúdo dos concursos. Que patetice!
Ainda assim assinável, em resmungo com o patrioteirismo explícito.