«Proponho-lhe um jogo. Imagine que vai nascer amanhã e que, hoje, tem a possibilidade de escolher um número de um a seis. A escolha é sua, é o número que quiser. Agora lance um dado, daqueles dos jogos de tabuleiro. Se não lhe calhou o número em que pensou – ou seja, tendo calhado qualquer um dos outros cinco números –, chegado o dia de amanhã irá nascer num país sem infra-estruturas e sem cuidados de saúde. Não lhe posso garantir acesso a água potável. Para isso terá que lançar uma moeda ao ar. Se sair caras, então, sim, terá água potável e casas de banho à sua disposição. É disto que estamos a falar quando pensamos no lugar onde nascemos e das condições de vida que temos.
Numa página oficial da União Europeia lê-se que “nem todas as pessoas que chegam à Europa necessitam de protecção”. É, claramente, uma noção muito estrita de protecção. Quem enfrenta condições de pobreza e incerteza – mesmo que fora de um cenário de guerra, perseguição ou desastre natural – necessita de protecção. Não só ambas as motivações – económicas e políticas – estão muitas vezes interligadas, como são igualmente legítimas. Nenhum de nós embarcaria num daqueles barcos. Quem o faz, fá-lo porque a diferença entre lá e cá é incomensurável. A Europa é sinónimo de segurança e é também – mesmo depois do embate da crise – próspera, muito próspera face aos países de origem destes migrantes. O poder de atracção da UE devia deixar-nos felizes: nascer na Europa é ter tido muita, muita sorte.
Por erro de percepção, temos um sentimento de propriedade, de direito sobre este feliz acaso, procurando limitar o acesso dos outros, os menos afortunados. Somos privilegiados por ter nascido na Europa. Esse facto – acrescido do contexto socioeconómico dos nossos pais – determina, de forma muito marcada, o nosso rendimento e qualidade de vida enquanto adultos. De acordo com a OCDE, alguém nascido numa família pobre em Portugal precisa de cinco gerações para conseguir atingir o nosso nível de rendimento médio. Mesmo nos países nórdicos, é preciso esperar três gerações. Ambos os factores – a nacionalidade e os pais – são privilégios de nascimento, que tão veementemente combatemos noutros contextos.
É naturalmente legítimo que procuremos, dentro das possibilidades da política pública, promover a igualdade de oportunidades para os nacionais, mitigando o lastro geracional. Mas não defender o mesmo para os não nacionais é, como sublinha Kenneth Rogoff, uma hipocrisia moral. A igualdade de oportunidades, que dificilmente algum de nós rejeitará enquanto princípio, é negada a todos quantos não tenham tido a sorte que tivemos. Os nossos valores terminam, subitamente, na fronteira. Procurar um futuro melhor – deixando para trás uma vida claramente abaixo do que, no mundo Ocidental, é o limiar da pobreza e da dignidade – não pode ser considerado uma motivação menor. Não o é.
As percepções erradas sobre a migração e os migrantes são tão generalizadas quanto nocivas e é por isso particularmente premente refutá-las. De acordo com o Eurobarómetro, parecem ser aqueles com menores rendimentos e com maior dificuldade em pagar as contas os que mais se opõem à imigração, reflexo daquilo que alimenta esse medo. É natural que sejam estas as pessoas que se sentem mais directamente ameaçadas nos seus empregos e nas já limitadas transferências sociais. A análise do think tank Bruegel dá-nos dois factos relevantes: mostra que não só muitas pessoas sobrestimam largamente – em muitos casos, em dobro ou em triplo – o número de migrantes nos seus países, como parece haver uma relação inversa entre a presença de migrantes e os sentimentos anti-imigração. Por outras palavras, a presença real de migrantes tem um impacto positivo na opinião dos nacionais.
Vários factores concorrem para isso. Um deles tem precisamente a ver com o mercado de trabalho. A Europa precisa de pessoas. Muitos países têm falta de mão-de-obra, falta essa que, de acordo com as contas de Darvas e Raposo (2018), ultrapassa já os valores pré-crise e é transversal aos diferentes sectores: indústria, serviços e construção. Em países como Portugal ou Itália, onde esta situação ainda não se verifica, o problema surgirá em alguns anos, tendo em conta o envelhecimento particularmente acentuado da população.
Um passo essencial da política de migração europeia será informar. Numa experiência no Japão, Facchini, Margalit e Nagata (2016) mostram que apresentar os desafios demográficos e de mercado de trabalho que o país enfrenta – semelhantes, em larga medida, aos europeus –, sublinhando o contributo dos migrantes, aumenta de forma significativa o apoio por políticas de imigração, passando de 30% dos inquiridos para até 50%, ou seja, um não negligenciável aumento de 20 pontos percentuais.
Se o caminho passa pela tarefa (ilusoriamente fácil) de informar, obviamente não se esgota aí. Temos também que aprender a acolher. Afinal, fomos durante séculos um continente de emigrantes. A imigração líquida positiva na Europa é um fenómeno com apenas algumas décadas. Acolher implica duas coisas. A primeira é não forçar países que, ainda que geograficamente na Europa, não partilham os valores europeus a receber migrantes. As quotas de distribuição foram uma muito má ideia como, de resto, já percebemos agora. Quereria algum de nós, chegado a um novo continente, ser forçado a permanecer onde não era bem-vindo?
A segunda é integrar, ou seja, promover a igualdade de oportunidades, como procuramos fazer com os que cá nascem. Até agora, não fomos particularmente bem-sucedidos. A Europa está aquém do Canadá ou dos Estados Unidos na capacidade de integração. Num estudo de 2018, a OCDE fala de uma sobre-representação dos descendentes de migrantes nos grupos socioeconómicos mais desfavorecidos. Mas sublinha também que os dados disponíveis não permitem perceber de forma clara as causas deste fenómeno, que extravasam as dificuldades do ponto de partida. Para fazer melhor, temos que perceber como.
Ainda assim, tudo isto não basta, claro que não basta. Mas será um excelente começo.»
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