«Começo por citar o artigo de abertura do Le Monde de hoje: "Alguns milhares de adolescentes e jovens adultos, saídos dos bairros populares, na maior parte entre os 14 e os 20 anos, fizeram vacilar a República provocando os mais graves motins urbanos de sempre na França moderna."
É um fenómeno de muitas dimensões mas vou centrar-me no "problema gueto", que está na origem do "mal francês". Para uma abordagem mais global, ler a última newsletter de Teresa de Sousa.
Anota o mesmo artigo: "A ‘guetização’ dos bairros mais pobres é conhecida desde há 20 anos, mesmo se uma parte dos sociólogos e das autoridades sempre tenha recusado o termo", geralmente em nome da França republicana.
O gueto está na raiz da segregação social e ética sofrida pelos habitantes dos bairros populares. Escreve o sociólogo François Dubet: "As escolas e os estabelecimentos sociais são percebidos como estrangeiros ao bairro. Apesar das políticas locais, apesar do empenho dos trabalhadores sociais e dos professores, os habitantes sentem-se postos à margem por causa das suas origens, da sua cultura, da sua religião e da sua residência: o bairro exclui-os e encerra-os, ao mesmo tempo que os protege. (…) Os jovens destes bairros têm o sentimento de serem prisioneiros de um destino social e racial congelado." Pouco importa que a discriminação fosse muito mais forte e visível há meio século. Hoje, as discriminações são vividas como intoleráveis. E, mais ainda, quando é difícil sair do gueto.
A discriminação é real e mede-se: "Sabemos que um jovem de origem estrangeira que vivam num bairro de reputação difícil tem muito menos oportunidades. Estes jovens acumulam uma série de indicadores negativos, do desemprego ao fracasso escolar. As políticas urbanísticas não reduziram a segregação social e étnica. Os habitantes dos bairros ‘prioritários’ continuam a ser os mais pobres e precários, de imigrantes ou saídos da imigração" (Dubet).
Guetos e guetos
O termo guetto tem origem nos bairros judaicos do Norte de Itália. Os guetos de Veneza surgiram após a expulsão dos judeus de Espanha. O termo generalizou-se depois. O sociólogo americano Louis Wirth estudou os bairros de imigrantes nos anos 1940. Considerou-os uma "formação social que permite a um grupo que acaba de se instalar recentemente amortecer o choque migratório". Neste sentido, o gueto americano era uma via e uma etapa de integração na sociedade.
O historiador Pap Ndiaye, actual ministro da Educação francês, estudou o bairro judaico de Chicago e divergiu de Wirth: "O gueto não é apenas um lugar em que as pessoas se agregam para absorver um choque imigratório. É, mais precisamente, um novelo etno-racial em que os habitantes estão verdadeiramente ‘encurralados’ e sofrem formas de segregação e discriminação."
Les Blancs sont partis (Os brancos partiram) é o título de um livro recente do jornalista Arthur Frayer-Laleix, especialista em imigração e que percorreu os bairros mais pobres de França. O título da longa reportagem parece paradoxal, mas são palavras "pronunciadas com tristeza" por alguns marroquinos, argelinos, marfinenses, malianos ou senegaleses, que apontam a realidade crua das periferias francesas, a emergência de uma "separação racial" sem apartheid. "A luta contra os guetos deveria ser uma grande causa nacional", declara Frayer-Laleix.
A brutalidade da polícia e certos comportamentos racistas não são a origem dos fenómenos. São um detonador de explosões. Um tiro, um morto e o incêndio dos bairros. Também as redes sociais não são causas: são multiplicadores das reacções.
Qual o efeito da ‘guetização’? Os pobres e os imigrantes são condenados a viver em conjunto e, inclusive, formam-se guetos dentro dos guetos. Depois surge uma espécie de violência niilista que leva à destruição dos equipamentos sociais dos próprios bairros.
Volto a Dubet: "Nenhum motim tem uma verdadeira tradução política. Tudo se passa como se os bairros populares estivessem num vazio político, como se a raivas e as revoltas não desembocassem em nenhum processo político. Nas democracias os movimentos sociais e os partidos políticos têm um papel essencial: transformar as emoções em acções organizadas, em reivindicações, em projectos. As revoltas operárias tornaram-se sindicatos e partidos de esquerda. Sem eles, apenas teria havido violência e silêncio. Os motins das periferias são um problema social porque não desembocam na emergência de um actor."
Lembra Dubet: "O contraste com as antigas periferias vermelhas é impressionante: as aglomerações do pós-guerra não eram ricas, mas eram enquadradas por partidos, sindicatos e trabalhadores da educação popular." Tudo isto desapareceu. Tudo se parece reduzir-se ao epifenómeno: o confronto de manifestantes e polícias.
O vazio conduz a uma completa ruptura entre os habitantes, sobretudo os jovens, e os eleitos, autárquicos e políticos. "Esta experiência é tão violenta que leva os jovens a destruir tudo que os pode ligar à sociedade – as bibliotecas, as escolas, os centros sociais." Os símbolos do Estado são o alvo.
A situação, com todas as suas diferenças, pode ser mais aguda nos Estados Unidos e na França. Seria, no entanto, sábio que cidades e países onde proliferam novos guetos, em vez de o silenciar, levassem o fenómeno a sério: um gueto não é um problema de polícia.»
Jorge Almeida Fernandes
Newsletter do Público, 07.07.2023
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