21.11.18

O populismo entre nós



«O sucesso eleitoral de movimentos e líderes populistas conservadores um pouco por todo o mundo (EUA, Brasil, Filipinas, Turquia, Itália, França, Alemanha, etc.) suscita apreensão nos países que ainda não foram contagiados pelo vírus. Em Portugal vários grupúsculos e pequenos líderes tentam aproveitar o ar dos tempos, aspirando a tornar-se os Trumps, Bolsonaros ou Salvinis lusitanos. Até prova em contrário, estas imitações de baixa qualidade parecem condenadas ao fracasso. Isso não significa, porém, que o país esteja livre de populismos da mesma espécie. Os riscos, porém, vêm de outras paragens, a mais óbvia das quais já é antiga, mas perdura por boas e más razões - o populismo territorial.

Não faltam em Portugal sinais de propensão ao populismo de base territorial às mais variadas escalas. É o norte contra o sul. É o interior contra o litoral. São os arquipélagos contra o continente. É o Porto contra Lisboa. São as cidades médias contra as metrópoles de Lisboa e Porto. É Guimarães contra Braga, Viseu contra Coimbra e várias outras cidades médias contra outras urbes de dimensão semelhante. São os subúrbios contra o centro das cidades. São as zonas rurais contra as zonas urbanas nos municípios do interior. São, enfim, grande parte dos municípios contra os outros, ou os bairros e as freguesias contra os vizinhos do lado.

Os porta-vozes do populismo territorial não vêm geralmente de fora do sistema político-partidário existente, ainda que procurem distinguir-se dele. Alberto João Jardim, o caso mais destacado, foi durante décadas eleito como cabeça-de-lista, líder regional e dirigente nacional de um dos maiores partidos portugueses. Os inúmeros presidentes de câmara, presidentes de juntas de freguesia, presidentes de regiões autónomas ou comissões de desenvolvimento regional e deputados que produziram discursos mais ou menos populistas baseados na defesa dos interesses ou da identidade dos "seus" territórios - Daniel Campelo, conhecido como o "deputado limiano", foi outro caso marcante - vieram quase sempre do seio dos principais partidos e, em geral, neles se mantiveram. De fora do sistema político nenhum exemplo se aproxima de Pinto da Costa, que porém nunca concretizou a ameaça velada de se envolver directamente na vida política.

Como escrevi acima, existem bons motivos para o surgimento de vozes que reivindicam mais e melhor para os diferentes territórios. Em qualquer país os responsáveis políticos tendem a dar mais atenção às cidades onde se localizam os centros de poder do que às regiões mais distantes. Qualquer que seja a zona do mundo ou a escala geográfica, o poder nunca está homogeneamente distribuído pelo território e quem está mais longe dos centros de decisão quase tem menos influência na distribuição de recursos. A representação dos interesses e das aspirações de base territorial é por isso necessária à construção de uma democracia inclusiva, tal como o são as representações dos interesses de classe, de grupo profissional, de etnia, de género, etc. Ainda é mais assim em Portugal, um dos países com maior nível de centralização de poderes entre as economias mais avançadas.

Se existem bons motivos para as reivindicações de base territorial, não faltam casos em que a suposta defesa das populações locais ou regionais é usada como instrumento por quem prossegue interesses essencialmente particulares. Muitas vezes os representantes do populismo territorial, falando em nome de todos os conterrâneos e evocando uma identidade colectiva distintiva, acusam os poderes centrais de se apoderarem dos recursos que são de todos, quando eles próprios concentram recursos que estão muito mal distribuídos nas suas regiões. Muitas vezes, a reivindicação da descentralização de poderes tem menos que ver com o reforço da coesão social e da democracia inclusiva - que em muitos casos poderia sair prejudicada caso as reivindicações fossem satisfeitas - do que com a pretensão de grupos locais de verem o seu poder aumentado para benefício próprio.

Não julguemos que este risco é menor em Portugal por ser uma nação antiga e relativamente homogénea. Oitocentos anos de história implicam que o país teve muito tempo para se organizar como mercado unificado. Quando há forte integração económica há especialização produtiva entre regiões. Quando as regiões produzem bens e serviços distintos, as suas economias evoluem a ritmos diferentes. Diferentes ritmos de crescimento económico e de criação de emprego entre regiões criam parte das condições sobre as quais o populismo territorial assenta.

Os argumentos do populismo territorial chegam a ser caricatos: se a economia da "nossa" terra está a crescer relativamente pouco é porque as outras não têm solidariedade; se está a crescer acima da média é porque os outros "nos" estão a puxar para trás. De uma forma ou de outra, os "outros" são sempre acusados de extrair recursos que são "nossos". Os argumentos podem ser risíveis e a lógica subjacente é frequentemente perversa, mas hoje sabemos que isso não impede o sucesso deste tipo de populismo.

Num momento em que se discute - e ainda bem - a descentralização de competências para as autarquias e se volta a falar de regionalização em Portugal, é conveniente não minimizar os riscos associados ao populismo de base territorial. Os maiores perigos para a preservação de uma sociedade decente vêm frequentemente de onde não estamos a ver.»

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