6.4.17

Entre as brumas da minha memória



Texto publicado hoje no esquerda.net, integrado no ciclo «Mulheres de Abril».

O poder que Marcelo Caetano não quis deixar cair na rua antes de sair do quartel do Carmo, os gritos sem fim de vitória, que ainda hoje fazem arrepiar. A liberdade que nunca se imaginara poder ser tão grande, as esperanças quase sem limites dos tempos que se seguiram. Sim, tudo isso, mas foi longo o caminho de muitos para lá chegarem – e o meu também foi.

Nasci em Lourenço Marques, fui colona ingénua e inconsciente durante a infância, vim para uma Lisboa salazarista e cinzenta (que detestei) a tempo de fazer o antigo liceu, ainda frequentei um ano na universidade, mas optei por partir para a Bélgica, antes de completar 19 anos, para estudar Filosofia em Lovaina. Aí me licenciei e doutorei.

E foi em Lovaina que «acordei para a política», não só mas sobretudo na sequência do processo de independência do Congo Belga, que acompanhei de muito perto, e no contacto pessoal com dirigentes do MPLA, então residentes em Paris, antes e quando rebentou a guerra em Angola.

Regressada a Portugal em fins de 1962, mergulhei imediatamente no mundo dos chamados «católicos progressistas», a vários níveis: colaborei em publicações clandestinas contra a guerra colonial, noutras semilegais, em revistas como «O Tempo e o Modo», na cooperativa Pragma, em organizações como a Acção Católica ou o Centro Nacional de Cultura, em grupos fechados de padres e leigos onde tudo se debatia e era posto em causa, etc. etc. – uma grande teia que se estendia em múltiplas arenas, na qual se movia um significativo número de pessoas, que exerciam a oposição possível tanto a nível clandestino como legal. Sempre num jogo de gato e rato com a censura, sempre a fazer telefonemas em linguagem cifrada, sempre a olhar por cima do ombro para ver quantos agentes da PIDE estariam nas salas, sempre com medo de que a campainha tocasse ao nascer do dia. Éramos muitos, mais do que se pensa porque nada foi contabilizado, uns que hoje se consideram ateus (como é o meu caso), outros agnósticos, vagamente cristãos ou ainda activos no catolicismo. Mas algo nos unia até ao 25 de Abril: éramos, convictamente, antifascistas e anticolonialistas, sem qualquer enquadramento partidário, mas com uma extraordinária e habilidosa agilidade activista e uma forte e genuína generosidade.

De todas as tarefas a que me fui dedicando, escolho uma. Entre 1966 e 1968, integrei a Junta Central da Acção Católica, uma poderosa instituição que contava então com mais de 100.000 afiliados, pela primeira vez presidida por um leigo (Sidónio Paes). Convidada para dela fazer parte, hesitei. Mas fiel ao princípio que então nos guiava – «ir a todas» –, acabei por aceitar, em acção concertada com alguns dos outros novos membros, na convicção de se tratar de uma oportunidade a não ser desperdiçada como veículo privilegiado para mudança de mentalidades e de atitudes, não só mas também no campo político. Julgo que esse objectivo foi modesta mas parcialmente atingido, embora com muitas dificuldades quase desde a primeira hora. Os conflitos com o cardeal Cerejeira foram-se agravando e a experiência não durou mais de dois anos.

E como há episódios que podem ajudar a perceber o que pretendo transmitir, recordo um que tenho tido bem presente nos dias que correm, a propósito de um acontecimento que se avizinha meio século mais tarde.

Quando se confirmou que Paulo VI viria a Fátima por ocasião do cinquentenário das aparições, em Maio de 1967, instalou-se uma consternação nos meios da oposição, sobretudo católica, pelo que seria visto, no mínimo, como uma quebra do isolamento em que Portugal se encontrava na cena internacional por causa da guerra em África – isolamento que aprovávamos e no qual depositávamos grandes esperanças, não só para a resolução do problema da guerra em si mas para a própria queda do fascismo.

Tentámos algumas formas de pressão para evitar a vinda do papa, que se revelaram infrutíferas, mas porque contra factos poucos argumentos nos restavam, passámos ao ataque. Entre várias iniciativas, foi preparada uma a que se deu grande importância: a elaboração de um documento altamente sigiloso, a fazer chegar directamente a Paulo VI (e nunca através da Nunciatura...), no qual um numeroso grupo de antigos e então actuais dirigentes da Acção Católica e de outras organizações, alguns com grandes responsabilidades na sociedade, informavam detalhadamente o Papa sobre a situação política e social existente em Portugal, por eles considerada inaceitável e mesmo contrária aos ensinamentos da própria Igreja. Havia que garantir que o documento fosse entregue em boas mãos e alguém nos indicou a pessoa certa: um antigo secretário particular do papa João XXIII, que integraria a comitiva de Paulo VI.

Como membros da Junta Central da Acção Católica fomos convidados de honra, juntamente com as autoridades civis e eclesiásticas, e estivemos por isso presentes, como alguns de nós tínhamos aliás exigido (em parte para que esta acção planeada pudesse ser levada a bom termo), na tribuna, em Fátima, a poucos metros de Salazar e da irmã Lúcia... Com o nosso livre¬ trânsito, circulámos por toda a parte e encontrámos facilmente o tal mensageiro seguro, a quem um outro membro da Junta Central e eu própria entregámos a preciosa missiva, sem que os outros elementos da dita Junta se tivessem apercebido da manobra, já que apenas nós dois estávamos implicados nessa acção. De Roma viria mais tarde um cartão com a indicação de «Missão cumprida». Tudo isto parecerá hoje inócuo, sobretudo para quem já nasceu ou cresceu em democracia, mas não o era então. E saímos de Fátima com a consolação de termos feito uma finta durante um desafio em terreno mais ou menos adverso, num tipo de jogada em que as circunstâncias nos tinham tornado quase especialistas. Só fui a Fátima por este motivo e nunca mais lá voltei.

Aliás, vivia-se já o início de uma crise de descrença nas expectativas criadas pelo Concílio Vaticano II e de desânimo na luta inglória contra o compromisso dos bispos portugueses com a ditadura. Nesse fim da década de 60, assistiu-se a uma verdadeira debandada da Igreja de muitas pessoas, padres e leigos progressistas e activíssimos – e eu fui uma dessas pessoas.

Entretanto, mantivera contactos com exilados políticos portugueses na Bélgica, regressei várias vezes a Lovaina e acabei por colaborar com a LUAR e por escrever, episodicamente e sob pseudónimo, em duas revistas publicadas no estrangeiro – «Cadernos Socialistas» e «Perpectivas».

Já no início da década de 70, integrei um grupo semiclandestino a que pertenceram alguns advogados, que vieram mais tarde a fundar o MES, e futuros militantes e dirigentes do PRP/BR. Fui recrutada para este partido e nele executei várias tarefas, até 1974, não só mas também na função de «correio» de recados e materiais, entre Portugal e o estrangeiro, já que, por motivos profissionais, saía muitas vezes do país. Pertencia ao PRP quando se deu o 25 de Abril (mas só lá permaneci mais alguns meses).

Como passei esse primeiro dia do resto da minha vida? Na rua, depois de um telefonema recebido às quatro da manhã. No primeiro acto de desobediência a novas autoridades, que ainda nem o eram, saí imediatamente e só regressei a casa na madrugada do dia seguinte. Fui ter com amigos, deambulámos de carro e a pé pela cidade – horas e horas, primeiro pelas ruas da baixa, depois no Largo do Carmo até à rendição de Marcelo. A espera, as dúvidas, os boatos, o megafone de Francisco Sousa Tavares – e também os cravos, a Grândola. Pelo meio algumas corridas, evacuação obrigatória do local quando se pensou que o quartel não se renderia a bem, almoço tardio com últimos feijões pescados do fundo de uma panela, numa tasca do Largo da Misericórdia, pelo mais total dos acasos na companhia de José Cardoso Pires. Regresso ao Carmo, o desenrolar de tudo o que se sabe, o chaimite que levou Marcelo Caetano, os tais gritos sem fim de vitória. A liberdade, sim. (i)

Joana Lopes - Doutorou-se em Filosofia no Instituto Superior de Filosofia da Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, e deu aulas na Faculdade de Letras de Lisboa. Em 1970, entrou na IBM, onde esteve 25 anos. Começou por ser engenheira de sistemas, depois directora em vários níveis e, finalmente, foi a primeira mulher a fazer parte da Comissão Executiva da Administração da empresa. Quase no fim desse percurso, esteve três anos num Centro Internacional de Educação da IBM, em La Hulpe (Bélgica), como directora de um departamento. Posteriormente, leccionou, durante alguns anos, em mestrados da Universidade Aberta e trabalhou como consultora «free lancer» no domínio das Tecnologias da Informação. Em 1997, publicou «Sistemas de Informação para a Gestão – Conceitos e Evolução», Universidade Aberta, e, em 2007, «Entre as Brumas da Memória - Os Católicos Portugueses e a Ditadura» (Âmbar). (1)

(1) Informações retiradas da biografia publicada na página de facebook “Antifascistas da Resistência” 
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