7.12.18

Cada pessoa que insultava um gilet jaune insultava o meu pai



Já ontem fiz referência a este texto do escritor Edouard Louis. Mas foi entretanto traduziado pela Ana Cristina Pereira Leonardo no Facebook, já que é cada vez menor o número de portugueses capazes de ler um texto em francês... Aqui fica a tradução.

«Há já alguns dias que tento escrever um texto sobre e para os gilets jaunes, mas não consigo. Porque, de certo modo, me sinto pessoalmente visado, algo na extrema violência e no desprezo de classe que se abatem sobre esse movimento me paralisa.

Tenho dificuldade em descrever a sensação de choque quando vi aparecerem as primeiras imagens dos gilets jaunes. Nas fotografias que acompanhavam os artigos via corpos que raramente aparecem no espaço público e mediático, corpos em sofrimento, arruinados pelo trabalho, pelo cansaço, pela fome, pela humilhação permanente dos dominadores em relação aos dominados, pela exclusão social e geográfica, via corpos cansados, mãos cansadas, costas alquebradas, olhares exaustos.

A razão porque ficava tão perturbado estava evidentemente na minha aversão à violência do mundo social e das desigualdades, mas também, e talvez antes de mais, porque aqueles corpos que eu via nas fotografias eram semelhantes aos corpos do meu pai, do meu irmão, da minha tia… Assemelhavam-se aos corpos da minha família, dos habitantes da vila onde vivi durante a infância, gente com a saúde corroída pela miséria e pela pobreza e que repetiam sempre, todos os dias da minha infância, “não contamos para ninguém, ninguém fala de nós” – daí que me sentisse pessoalmente visado pelo desprezo e violência da burguesia que logo se abateram sobre o movimento. Porque para mim, em mim, cada pessoa que insultava um gilet jaune insultava o meu pai.

De imediato, desde o nascimento do movimento, vimos nos media “especialistas” e “políticos” a diminuir, condenar, troçar dos gilets jaunes e da revolta que estes encarnam. Via desfilar nas redes sociais as palavras “bárbaros”, “brutamontes”, “labregos”, “irresponsáveis”. Os media falavam do grunhir dos gilets jaunes: as classes populares não se revoltam, não, elas grunhem como as bestas. Ouvia falar da “violência do movimento” quando um carro era incendiado ou uma montra partida, uma estátua danificada. Fenómeno habitual da percepção diferenciada da violência: grande parte do mundo político e mediático queria fazer-nos acreditar que a violência não são milhares de vidas destruídas e reduzidas à miséria pela política, mas algumas viaturas incendiadas. É realmente preciso nunca ter conhecido a miséria para poder pensar que uma tag num monumento histórico é mais grave do que a impossibilidade de sonhar, de viver, de se alimentar ou de alimentar a família.

Os gilets jaunes falam de fome, de precariedade, de vida e de morte. Os “políticos” e uma parte dos jornalistas respondem: “símbolos da nossa República foram aviltados”. Mas de que fala esta gente? Como ousam? De onde vêm? Os media falam também de racismo e de homofobia nos gilets jaunes. Estão a troçar de quem? Não quero falar dos meus livros, mas é interessante assinalar que, sempre que publiquei um romance, fui acusado de estigmatizar a França pobre e rural precisamente porque referia a homofobia e o racismo presentes na vila da minha infância. Jornalistas que nunca haviam feito nada pelas classes populares indignavam-se e punham-se de repente a representar o papel de defensores das classes populares.

Para os dominadores, as classes populares representam a classe-objecto por excelência, para retomar a expressão de Pierre Bourdieu; objecto manipulável do discurso: um dia os bons pobres autênticos, racistas e homofóbicos no dia seguinte. Nos dois casos, a vontade subjacente é a mesma: impedir a emergência da palavra das classes populares, sobre as classes populares. Se temos que nos contradizer de um dia para o outro, que se lixe, desde que eles se calem.

Claro que há expressões e gestos homofóbicos e racistas no seio dos gilets jaunes, mas desde quando esses media e esses “políticos” se preocupam com o racismo e a homofobia? Desde quando? O que é que eles fizeram contra o racismo? Será que utilizam o poder de que dispõem para falar de Adama Traoré ou do Comité Adama? Será que falam da violência policial que se abate todos os dias sobre os negros e os árabes em França? Não deram uma tribuna a Frigide Barjot a ao Monsenhor-não-sei-quantos na altura do casamento para todos, e, ao fazê-lo, não tornaram a homofobia possível e normal nos programas de televisão? Quando as classes dominantes e certos media falam de homofobia e de racismo no movimento dos gilets jaunes, não falam nem de homofobia nem de racismo. Dizem: “Pobres, calados!” Por outro lado, o movimento dos gilets jaunes é ainda um movimento em construção, a sua linguagem não está fixada: se existe homofobia e racismo entre os gilets jaunes, é da nossa responsabilidade transformar essa linguagem.

Há diferentes maneiras de dizer: “Sofro”: um movimento social é precisamente esse momento em que se abre a possibilidade de que aqueles que sofrem deixem de dizer: “Sofro por causa da emigração e da minha vizinha que recebe ajudas do Estado” e passem a dizer: “Sofro por causa daquelas e daquelas que governam. Sofro por causa do sistema de classe, por causa de Emmanuel Macron e Edouard Philippe”. O movimento social é um movimento de subversão da linguagem, um momento em que as velhas linguagens podem vacilar. É o que se passa actualmente: assiste-se desde há alguns dias a uma reformulação do vocabulário dos gilets jaunes. No início, ouvia-se apenas falar de gasolina e por vezes de palavras desagradáveis como “os assistidos”. Ouvem-se agora as palavras desigualdade, aumento de salários, injustiça.

Este movimento deve continuar porque ele encarna algo de justo, de urgente, de profundamente radical, porque os rostos e as vozes que estão habitualmente sujeitos à invisibilidade são finalmente visíveis e audíveis. O combate não será fácil: os gilets jaunes representam uma espécie de teste de Rorschach para uma grande parte da burguesia: eles obrigam-na a exprimir o seu desprezo e violência de classe, expresso habitualmente apenas de forma dissimulada, desprezo que destruiu tantas vidas à minha volta, que continua a destruir e cada vez mais, um desprezo que reduz ao silêncio e que me paralisa ao ponto de não conseguir escrever o texto que queria escrever, de exprimir o que queria exprimir.

Mas temos de ganhar: somos muitos, e muitos a dizer que não podemos sofrer mais uma derrota para a esquerda, logo, para aquelas e aqueles que sofrem.»
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