10.12.18

Trump é uma ameaça à democracia e Xi Jinping não é?



«1. Se não tivéssemos qualquer ideia da China poderíamos ser tentados a pensar que é um caso único no mundo. Um país onde só há negócios, comércio, exportações e investimentos. Um mercado importante, gigantesco na sua dimensão, com imensas oportunidades. Quanto à política — e às questões políticas — não existem, nem para os chineses, nem para quem se relaciona com estes. Esta representação, com raras excepções, feita na imprensa portuguesa, no contexto da visita do Presidente chinês, Xi Jinping, é admirável. É a mesma imprensa onde, todos os dias, vemos preocupações com as ameaças à democracia e aos direitos humanos, oriundas do populismo, dos nacionalismos, da xenofobia, do racismo, etc. Mas nada disso existe, ou parece existir, na China. Assim, nas relações com os chineses só existe a economia, só existem exportações, só existem investimentos, só existem negócios. Tudo o resto é irrelevante. O facto de Xi Jinping presidir ao maior Estado autoritário do mundo não interessa nada. Não se pode, nem deve, criticar um país que investe em massa em Portugal e dá oportunidades de mercado às empresas portuguesas. (Ver “Presidente chinês é ‘dono disto tudo’. Comentário de chefe de divisão no MNE é ‘lamentável’, diz ministro” in Público, 4/12/2018). Nem também fazer mini-manifestações de apoio ao Tibete anexado pela China: estragam a imagem boa imagem que Xi Jinping tem dos portugueses e os negócios. (Ver “Chineses tapam protesto de activistas pela libertação do Tibete” in Público, 4/12/2018).

2. Tudo na política e economia internacional tem múltiplas facetas e normalmente também um reverso. Sob uma imagem superficial de grande amizade e cooperação económica com a China, Portugal já está a ser condicionado na sua política interna e externa. É uma ilusão habilmente alimentada pelo governo chinês a existência de uma relação paritária, de benefícios mútuos simétricos. Pela importância mundial da China (que, obviamente, Portugal não tem), pelos investimentos estratégicos — na energia eléctrica, nas redes de distribuição, na banca e na própria imprensa portuguesa —, o Estado chinês tem já, nas suas mãos, instrumentos eficazes de condicionamento do Estado e da sociedade portuguesa. Tudo indica que não foi por acaso que o presidente chinês publicou um artigo no Diário de Notícias. (Ver “Presidente chinês escreve artigo no DN e fala de "uma parceria virada para o futuro" in Diário de Notícias, 2/12/2018). Esse jornal está inserido num grupo de empresas de comunicação social detidas por empresários de Macau / chineses — o que, de uma forma, ou de outra, leva também ao Estado chinês. (Ver “Chineses formalizam entrada no capital da dona do ‘DN’ e ‘JN’”? in Expresso, 9/10/2016). É verdade que, no contexto da visita de Xi Jinping, é perfeitamente normal o grande destaque dado à China na imprensa, bem como a publicação de diversos artigos analisando as ligações económicas já existentes, ou a desenvolver, entre os dois países. Ao mesmo tempo, há também uma significativa comunidade chinesa a viver entre nós, a grande maioria de gente humilde e muito trabalhadora, a qual faz um esforço notável de integração. Pelas ligações históricas e culturais do passado, é também natural que o presidente chinês tenha feito uma alusão à rota da seda, a Macau e a Camões. É uma competente estratégia diplomática de softpower para criar empatia. O problema é outro.

3. A China tem sido extraordinariamente bem-sucedida a ditar os termos em que se processa (e se discute publicamente) a sua relação com ela. Portugal, como “bom aluno”, aprendeu rapidamente. E os nossos governos gostam de agradar aos poderosos, seja na União Europeia (Alemanha e França), seja fora dela. Neste caso, o que chama mais à atenção foi o que não se falou durante a permanência de XI Jinping: economia, comércio e investimento sim; política, democracia e direitos humanos não. O Estado português evadiu completamente os assuntos políticos, da democracia e dos direitos humanos. A própria imprensa, em grande parte, os minimizou, seja por falta de espírito crítico analítico, seja por uma quase (auto)censura neste assunto. Tibete, uigures do Xianjiang, sistema de vigilância e controlo da Internet, repressão de críticos e dissidentes, inexistência de pluralismo político, liberdade de imprensa e de eleições livres, conflitos com os vizinhos no mar do Sul da China. Quase nada. Terra ignota. São assuntos de soberania e meras questões internas, como afirma oficialmente a diplomacia chinesa. Nada que deva preocupar o mundo exterior. Se aceitamos que seja assim, acabemos, então, com a hipocrisia europeia. Os direitos humanos só são direitos humanos se valerem (e forem aplicáveis) a toda humanidade. O resto é idealismo ou retórica vazia. Quando muito, serão direitos europeus ou ocidentais. Nada mais do que isso. Se não se aplicam à China onde vive cerca de 18% da humanidade — pois são uma ingerência interna na soberania desse Estado —, então os valores europeus, que a União Europeia afirma também ligar ao comércio, são uma abordagem hipócrita, uma ingerência externa nos Estados vulneráveis. São um instrumento de pressão sobre Estados fracos, como é o caso da maioria dos africanos, aos quais os europeus estão sempre a apontar o dedo (casos do Zimbabwe, Guiné Equatorial, etc.).

4. Pelas denúncias da Amnistia Internacional sabemos que a China está a proceder a violações em massa dos Direitos Humanos no Xinjiang (ver “China: Families of up to one million detained in mass “re-education” drive demand answers” in Amnesty International). Não sendo a situação exactamente a mesma, faz, todavia, sentido colocá-la em paralelo com o caso dos rohingyas na Birmânia / Myanmar. (Ver “Quem são os rohingyas, povo muçulmano que a ONU diz ser alvo de limpeza étnica”, in BBC, 13/09/2017). Em ambos os casos há, nesta mesma altura, denúncias de violações graves de direitos humanos. Trata-se, nas duas situações, de minorias ligadas a grupos étnicos e/ou religiosos diferentes da componente maioritária do país onde vivem — os uigures na China e os rohingyas da Birmânia/Myanmar. Em ambos os casos esses grupos minoritários queixam-se de ser objecto de discriminação e/ou perseguição pelas respectivas autoridades estaduais. Claro que, na óptica do Estado chinês e do Estado birmanês, a explicação é outra: o que está em causa são grupos separatistas que praticam actos de violência e terrorismo, pondo em causa a segurança nacional. Mas o contraste é flagrante: o caso dos rohingyas tem tido bastante atenção mediática a nível europeu e ocidental. Já o caso dos uigures do Xinjiang passa praticamente despercebido. A conclusão é cristalina: azar dos Estados pobres e fracos que estão sujeitos a escrutínio e ingerências externas. Se a Birmânia/Myanmar tivesse algo comparável ao poder da China — e os seus instrumentos económicos e comerciais — rapidamente os europeus e ocidentais deixariam de ver graves violações de direitos humanos. Tal como acontece com a China, ditaria os termos em que realizaria e discutiria publicamente a relação a esta. Só comércio e negócios.

5. Donald Trump é visto por muitos com grande apreensão, como trazendo uma ameaça séria à democracia liberal (ver “Donald Trump is a unique threat to American democracy” in Washington Post 22/07/2016). Essa preocupação é comum também fora dos EUA, especialmente na Europa. Não ocorre por acaso. Donald Trump não é presidente de um país qualquer, mas da maior potência mundial, com grandes tradições democráticas e liberais. Influencia o mundo exterior. Os sucessos de partidos e líderes populistas — como Jair Bolsonaro no Brasil —, têm sido também explicados pelo “efeito Trump”. Rodrigo Duterte (nas Filipinas), Viktor Orbán (na Hungria), Matteo Salvini (em Itália) e outros populistas / nacionalistas um pouco pelo mundo ganharam força pela proximidade com o estilo de liderança e visão do mundo de Donald Trump. Alguns receiam que até possa fazer regressar ao nacionalismo dos anos 1920/1930. Tudo isso é extraordinariamente contrastivo com a ignorância, ou benevolência acrítica, face ao impacto internacional da liderança de Xi Jinping no mundo. Como se a China — e a liderança de Xi Jinping —, que combinam capitalismo com autoritarismo e nacionalismo, suprimindo qualquer veleidade de democracia liberal, não tivessem qualquer importância, nem fossem um modelo em expansão no mundo. Não, o mundo dos anos 1920 e 1930 não vai voltar. A Europa já não é centro do mundo e quem dita o rumo dos acontecimentos são outros. Convém perceber a realidade: a China tem cada vez mais seguidores, sobretudo nas partes do mundo que os europeus ignoram (Ásia e África) nas suas narrativas eurocêntricas e obcecadas com Trump. No Ocidente, Vladimir Putin (Rússia) e Recep Tayyip Erdogan (Turquia), são criticados por serem autoritários. Mas ainda se dão ao trabalho de fazer eleições, ou um simulacro delas. Na China de Xi Jinping não se perde tempo com tais detalhes. Trump é um problema sério para a democracia liberal pela sua deriva populista, mas a democracia norte-americana tem mecanismos que o constrangem e limitam. Quanto à China de Xi Jinping, é um modelo em ascensão, um caso de sucesso de poder absoluto e irrestrito do Estado. Quando vemos a ameaça populista à democracia de Trump e ficamos míopes e calados face ao autoritarismo de Xi Jinping, estamos a descredibilizar a democracia liberal. Pior, estamos a abrir a porta ao autoritarismo entre nós.»

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