23.6.19

O que será de nós quando tivermos medo de estender a mão?



«O relógio por cima da sala comum do navio bate as nove horas da noite quando o líder de missão entra de rompante, interrompendo o jantar da tripulação. Havia uma chamada de emergência da guarda costeira italiana. Os 14 tripulantes e dois jornalistas correm a equipar-se e a tomar os respetivos postos. Ao sair para o convés olho para o mar escuro e consigo discernir ondas enormes só disfarçadas pela escuridão da noite que fazem o “Iuventa” oscilar violentamente. Uma mão segura os binóculos para tentar distinguir alguma coisa, algum sinal de vida no horizonte, e a outra fixa-me firmemente ao navio para não correr o risco de ser projetado borda fora, enquanto galgamos as ondas a dez milhas náuticas por hora.

À chegada, deparamo-nos com um barco de borracha furado que se vai enchendo de água e desfazendo a pouco e pouco, dezenas de pessoas agarradas às cada vez mais escassas partes do barco que permanecem à tona e outras tantas já dentro de água tentando, sem esperança, agarrar-se a algo que ainda flutue. A cada onda que passa, mais três ou quatro desafortunados são arrastados impiedosamente para as águas negras num estado de pânico sem descrição que lhe faça justiça. Até ao momento em que vemos as dezenas de caras amedrontadas, desesperadas e algo esperançosas não há nada que as humanize. Os meios de comunicação social referem números de mortos, números de chegados e taxas de mortalidade, os governos e partidos falam-nos de invasões e ameaças estrangeiras. No final, naquele momento em que estamos a dois braços de distância, é que nos chega realmente a consciência de que estamos perante pessoas.

Retirar uma pessoa da água é fisicamente exigente e demora muito tempo. O resgate é uma performance: ou se faz bem e as pessoas permanecem vivas ou se faz mal e as pessoas morrem. Ao fim de umas horas é-se uma máquina. As decisões são feitas umas atrás das outras quase sem hesitar porque já se discutiu todo o procedimento vezes sem conta. Não há tempo nem espaço para contemplar ou para sentir. Haverá tempo mais tarde, em terra. Juntamente com outros navios conseguimos resgatar 113 pessoas, que mais tarde foram acolhidas pelos Médicos Sem Fronteiras. O sucesso alcançado só nos pôde ser roubado pela notícia de que uma menina de três anos havia caído ao mar, possivelmente devido à agitação causada pela nossa chegada iminente. À menina seguiu-se a mãe, e quem sabe quantos além dos 113 terão entrado nesse mesmo barco sem nunca voltar a terra firme?

Este cenário teve lugar em outubro de 2016 e tem-se repetido até à exaustão ao longo do tempo, como uma frase que nos é dita tantas vezes que deixa de fazer sentido. 3950 mortes por afogamento mais tarde (dados da Organização Internacional para as Migrações), a 2 de agosto de 2017, o Centro de Coordenação de Resgate Marítimo em Roma obrigou o “Iuventa” a deixar a zona de resgate, onde este era necessário, e a dirigir-se para o porto de Lampedusa. Uma comitiva de dezenas de agentes policiais revistaram o navio à procura de armas de fogo, deixando-o como se tivesse atravessado uma tempestade em alto-mar. Nada encontraram, mas a tripulação permaneceu apeada.

Perante a maior crise humanitária da nossa geração, as autoridades italianas escolheram virar a cara para o outro lado consentindo tacitamente que homens, mulheres e crianças continuassem a perder a vida debaixo das ondas. Mas não ficaram por aí. No ano seguinte, nove colegas meus, e eu próprio fomos constituídos arguidos por suspeita de ajuda à imigração ilegal, um crime que, segundo a lei italiana, poderá conduzir cada um de nós a 20 anos de prisão e a milhares de euros em multas.

A possibilidade real de cumprirmos penas de prisão por nos termos dedicado de corpo e alma a salvar vidas humanas é injusta e arbitrária, mas não é o pior da situação em que nos encontramos. A verdadeira tragédia é que existem milhares de pessoas a tentar atravessar o mar Mediterrâneo em busca de uma vida digna e há cada vez menos meios de resgate disponíveis que possam garantir o mínimo aceitável de ajuda humanitária.

Com a conivência da União Europeia, Itália negociou um acordo com o Estado falhado da Líbia em fevereiro de 2017, capacitando a chamada guarda costeira para intersetar embarcações saídas das suas costas e devolvê-las à Líbia. Inúmeros relatos de sobreviventes corroboram o facto de que os migrantes intersetados são então trazidos para os infames campos de detenção, onde são expostos a tortura, prisão arbitrária e outras violações dos direitos humanos. De facto, não foram poucas as vezes que vimos dezenas de pessoas atirarem-se à água sem coletes salva-vidas e, muitas vezes, sem saberem nadar, no momento em que se aproxima um navio da guarda costeira Líbia. Arriscar a morte por afogamento afigura-se, para muita gente, preferível ao horror que advém da hipótese de se ser obrigado a retornar ao inferno do país norte-africano. Note-se que todos os países da União Europeia assinaram a Convenção de Genebra em 1951 estabelecendo uma definição universal para o que é um refugiado e determinando os seus direitos fundamentais. Entre estes está o princípio de não-retorno, que estipula que um requerente de asilo não deve ser devolvido a um país onde a sua vida ou a sua liberdade possam estar em risco.

A chamada “crise dos refugiados”, assim intitulada por quem não o é, é na realidade uma crise europeia de valores, uma crise de solidariedade visível numa Europa que tenta transpor o sofrimento para o lado de quem acolhe em vez de abrir as portas a quem forçosamente teve de fugir. Vivemos numa era em que trabalhadores humanitários têm de empregar os seus esforços em enfrentar processos judiciais pelo trabalho que fazem. Uma pergunta assombra-me: o que será de nós quando tivermos medo de estender a mão uns aos outros? O que está em jogo no caso “Iuventa” não é só a nossa liberdade pessoal, mas a construção da sociedade em que queremos viver.»

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