«Ao longo das últimas décadas, o imobiliário tem sido um dos poderes mais resilien¬tes, como agora se diz, na sociedade portuguesa. Foi um dos motores da acumulação financeira, concentrou investimentos e favores, promoveu a corrupção nas autar¬quias através da maquinaria da reclassificação de terrenos que permitiu mais-valias generosas e estimulou o desordenamento territorial que faz de algumas das nossas cidades montras do absurdo. O imobiliário foi rei, em parceria com partidos políticos, Governos, poderes locais. Foi um centro de redistribui¬ção de lucros e apetites. Foi o lado obscuro da banca. Criou fortunas. Ao longo deste século, foi também o farol da especulação e o epicentro da crise mundial de 2008 e da recessão que se lhe seguiu, em que bancos caíram como castelos de cartas e os Estados se endividaram para os proteger. Agora, regressa ao centro das atenções e pelos piores motivos.
Mais do que inflação
A subida do preço da habitação tem surpreendido os analistas. Nos EUA, o aumento em 2020 foi de 11%, o -maior dos últimos 15 anos, incluindo na comparação o período do auge da especulação do subprime. Segundo o Eurostat, na Europa a evolução é desigual: entre 2010 e 2021, o preço subiu 111% no Luxemburgo e 51% em Portugal, mais do que o valor das rendas (que se agravou 23%), mas desceu em Espanha, Itália e Grécia. Estes aumentos têm dois efeitos graves: ao mesmo tempo que ampliam uma ilusão de enriquecimento patrimonial, tornam mais difícil o acesso a habitação para as gerações mais jovens e favorecem a corrida especulativa que segrega os mais velhos que viviam em arrendamentos nos centros das cidades. No caso português, o efeito tem desagregado as cidades espacial¬ (os mais velhos vão para as periferias ou para o interior) e etariamente (saem os mais novos). A inflação habitacional tem ainda origem noutros custos: em setembro do ano passado, a despesa média de uma família europeia com gás para aquecimento durante um ano era de €119, em setembro deste ano já era de €738.
Portugal
Num país envelhecido (23,4% com mais de 65 anos) e hiperconcentrado territorialmente (50% da população em 31 concelhos, sobretudo nas ¬áreas metropolitanas), uma estratégia de investimento na habitação seria fundamental para responder a estas duas crises.
Ora, como se verifica pelos dados preliminares do Censos de 2021, não é fácil. No nosso país, 70% das famílias são proprietárias da sua habitação, das quais 62% já não têm encargos financeiros diretos. As dificuldades de acesso a habitação digna serão, então, a qualidade dessas casas de propriedade familiar, que constituem, em muitos casos, um património degradado, o custo da compra para quem não as tem e o custo dos alugueres para 22,3%, quase um quarto das famílias.
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Esses obstáculos foram estudados por Ana Cordeiro Santos, da Universidade de Coimbra, que analisou recentemente a ‘Sociedade de Proprietários e Bem-Estar Patrimonial: A Propriedade no Centro da Política’ (“Le Monde Diplomatique”, dezembro), que inclui o gráfico que pode aqui ver. Tomando como referência o ano de 2015, verifica-se como o salário médio varia pouco (mais 6% em 2020), ao passo que o preço da habitação dispara em 45%.
Se a compra de casa se vai tornando mais difícil, sobretudo para quem chega agora à vida adulta, o aluguer está também pela hora da morte: 61,4% das rendas são mais de €650 e 21% são mais de €1000.
Um plano que não é plano
Há então muita habitação que é património das famílias e quase dois terços já a pagou. Mas parte dessas habitações são más. Este capital familiar está degradado pelo tempo, dada a deficiente qualidade da construção, os erros de isolamento térmico ou outros. O IHRU (Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana) fez em 2018 o levantamento destas carências e encontrou 25.762 famílias que teriam de ser realojadas, tendo calculado em €1500 milhões o seu custo. O assunto foi tema quente nas eleições de 2019, constituiu mesmo a mais solene promessa do PS: em 2024, nos 50 anos do 25 de Abril, toda a gente estaria realojada.
Escusado será dizer que nada aconteceu nos dois anos seguintes, não houve orçamento para o inexistente programa de construção ou reabilitação habitacional. Os dias foram passando e a efeméride vai-se aproximando, mas a promessa ficou esquecida nas gavetas do Ministério das Finanças. Só foi reavivada com o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), mostrando, curiosamente, que os recursos internos nunca foram mobilizados para esta prioridade. Mesmo assim, a verba anunciada continua aquém do necessário, agora adiando para 2026 a data do festejo.
O problema é que, a cumprir-se a meta, e é preciso mais do que a promessa, ela pode ser insuficiente. Estudos recentes apontam para 35 mil famílias em carência, e o próprio Governo, em 2017, tinha publicado um estudo sobre uma “Nova Geração de Políticas de Habitação” que apontava para o objetivo de subir de 2% para 5% a oferta de habitação pública, ainda assim muito inferior à média europeia, o que significaria disponibilizar mais 170 mil fogos. Não há outra forma de condicionar os preços e de orientar estrategicamente a política de habitação. Será nestas eleições que se ergue tal vontade?»
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1 comments:
E continua a construção de mais casas precisamente onde há casas a mais!
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