5.3.24

Não se deve fazer política com o medo

 


«Não restam dúvidas sobre isto: Portugal é um país seguro. O Global Peace Index 2022 garante-nos que vivemos no sexto país mais seguro do mundo, numa lista que inclui 163 nações, e que mais tranquilidade do que a nossa só se encontra na Islândia, Nova Zelândia, Irlanda, Dinamarca e Áustria. Em 2014, estávamos no 18.º lugar. Há muita gente que sabe disto em vários continentes.

É por isso que norte-americanos compram casa em Cascais, israelitas investem no mercado imobiliário do Porto e brasileiros trocam as maravilhas do seu país de origem pelo sossego nacional.

Os brasileiros que fogem com o medo das balas perdidas e de uma criminalidade omnipresente, e os bolsonaristas do medo da presidência de Lula da Silva, ignorando que emigraram para um país governado por um partido socialista, sabem muito bem o que é o crime e a insegurança.

Não são os únicos. Cerca de 83% da população mundial vive em países nos quais os níveis de criminalidade são considerados elevados.

Além da segurança, Portugal não tem grandes razões para se preocupar com os níveis de criminalidade, como o comprovam os relatórios anuais do Ministério da Administração Interna. Se há crime, aliás, que tem vindo a crescer, é um em particular: o crime de ódio.

Sobre os crimes de colarinho branco nunca teremos informação suficiente para fazer uma ideia aproximada da sua dimensão. O que sabemos é que o crime em geral teve uma redução de 20,3% entre 2008 e 2019 e que o crime violento registou uma descida de 40,8% no mesmo período.

O crime violento, sublinhe-se, representa 4,3% de toda a criminalidade participada às forças de segurança. É verdade que quem folhear os tablóides pode ficar com uma visão mais sombria e assustadora do país. Mas é ainda mais verdade que a criminalidade em Portugal incide, sobretudo, no património e não nas pessoas. E as pessoas que são mais sujeitas ao crime são as mulheres, por causa da intolerável violência doméstica.

O crime é um dado objectivo, o sentimento de insegurança não é assim tão tangível. O tema do sentimento de insegurança tornou-se objecto de investigação académica na década de 50, como forma de estudar a relação entre o espaço público, enquanto local do crime, e o Outro, o delinquente.

A insegurança urbana foi profusamente discutida nos anos 90 no Porto, quando se falava da desertificação da Baixa como um território de alto risco, em associação a uma preocupação que nessa altura era constante: o toxicodependente-assaltante.

Vários estudos dessa época vieram esclarecer que os mapas do crime estavam na periferia do centro ou da cidade, que era onde estavam as pessoas e o património, por oposição a uma Baixa vazia.

E disseram-nos, também, outras coisas que estão presentes na literatura desta temática: que o sentimento de insegurança estava associado a pormenores do espaço urbano, como a iluminação nocturna das ruas, a degradação dos edifícios, com vidros partidos ou pichagens, e ao que certos autores chamam incivilidades, entre as quais o balde do lixo incendiado será a mais icónica.

Um dos casos que então ilustravam o sentimento de insegurança era o de uma idosa que vivia no Bairro do Lagarteiro, no Porto, tido com um dos mais problemáticos da zona oriental da cidade, que não despejava o lixo no contentor do bairro, porque tinha medo que este explodisse. O medo tinha uma explicação simples: a senhora receava que acontecesse o mesmo que tinha visto acontecer no País Basco, onde a ETA tinha colocado uma bomba num contentor semelhante.

Isto para dizer que o sentimento de insegurança não está directamente relacionado com a criminalidade e que resulta de um contexto mais vasto. “A percepção do crime e do risco de vitimização na verdade não estão separadas da percepção de outros problemas sociais, riscos e ameaças de exclusão”, como explicam Manuela Ivone Cunha e Ximene Rego em Crime e medo no país dos brandos costumes.

Por outras palavras, o sentimento de insegurança “é um fenómeno mais amplo do que o da criminalidade e, até certo ponto, independente dele” e “prospera entre aqueles que se vêem a si próprios em situação de incerteza, de vulnerabilidade ou de queda social, e que são mais sensíveis à ausência de uma acção pública eficaz nos vários âmbitos da segurança, não apenas o criminal”.

Estabelecer relações entre imigrantes, aqueles que não têm dinheiro para comprar casa ou um “visto gold”, e um sentimento de insegurança é uma de duas coisas: uma associação ignorante ou desonesta. É grave em ambos os casos que alguém a faça, sobretudo alguém que teve as responsabilidades que teve Pedro Passos Coelho, que sugeriu a emigração aos “piegas” professores desempregados. Fazer política a partir do medo não fica bem a ninguém.»

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