«A AfD teve 20,8% e ficou em segundo lugar, exatamente como se temia. E, no entanto, vejo alguns democratas fazerem uma festa. Porque não foi desta. Este foi o melhor resultado da extrema-direita desde a segunda guerra. E, apesar das doses cavalares de desinformação, Musk não teve grande coisa a ver com isso. A sua intervenção mais direta nas eleições alemãs até parece ter tido um efeito contraproducente. As razões são mais comuns.
A subida da CDU/CSU não é propriamente extraordinária: mais 4,4 pontos percentuais e mais 11 deputados. Menos do que o objetivo de ultrapassar os 30%. Aquilo a que assistimos é à queda de todos os que estiveram no último governo, como tem acontecido um pouco por toda a Europa. O SPD perde 9,3pp (e 86 deputados), sobretudo para a CDU, a AfD, o Die Link e o BSW, por esta ordem. O FDP perde 7,1pp e é varridos do parlamento (as derrotas dos liberais europeus sucedem-se), esvaziando-se para a CDU e a AfD. E os Verdes perdem 3,1pp (menos 33 deputados), perdendo sobretudo para o Die Linke, mas também para a CDU. Em compensação, a AfD ganha 10,4pp (mais 69 deputados), conquistando muitos votos à abstenção e, quase em igualdade, ao SPD, à CDU e à FDP. O Die Linke (Esquerda) ganha 3,9pp (mais 25 deputados), buscando votos aos Verdes e ao SPD, a que se juntam os quase 5% (um pouco abaixo, não elegendo deputados) do BSW, a cisão populista de esquerda de Sahra Wagenknecht que até caçou mais votos ao SPD do que ao Die Linke.
A razão para estes resultados parece ser a mais clássica possível: os preços, o custo de vida, a economia. 83% dos alemães dizem que a situação económica é má, contra 39% em 2022. E o eleitorado em que esse resultado é mais alto é da AfD (96%), bastante concentrado na Alemanha de Leste, o que deveria levar os alemães a fazerem um balanço da forma como fizeram a reunificação. O segundo é da CDU.
Foram as mulheres mais jovens das cidades que impediram que a vitória da direita fosse mais retumbante. Votaram 9% na AfD, 9% na CDU, 12% no SPD, 22% nos Verdes e 34% no Die Linke. A clivagem etária e de género tem sido comum em várias eleições. A Esquerda teve um resultado surpreendente (quase duplica a votação) porque conseguiu liderar e mobilizar o voto antifascista, depois da cedência da CDU na imigração, e porque fez uma campanha centrada na crise da habitação, conquistando o entre os mais jovens (até aos 24 anos), onde conseguiu 25% (a AfD 21% e a CDU, SPD e Verdes entre 11% e 13%).
Quando se olha para a avaliação que os eleitores do Die Linke fazem da situação económica e o seu nível de escolaridade, percebe-se que não foi para aqui que o voto mais popular e trabalhador se deslocou. A Esquerda tem, no entanto, outra vitória: para além de subir quando acontece a sua maior cisão, impede, por 0,03% pontos percentuais, que o movimento populista de Sahra Wagenknecht entre no parlamento. É verdade que tira peso relativo ao conjunto da esquerda, mas pode ter esvaziado a tentativa de ceder ao pior da direita para resolver as dificuldades e contradições da esquerda.
A AGONIA DO SPD
Estrutural é a crise do centro-esquerda e da social-democracia. É, na verdade, a grande questão política da Europa desde a terceira via. Não é a cultura “woke” ou outros assuntos laterais. É a incapacidade da social-democracia e do socialismo democrático representarem os trabalhadores. Porque a social-democracia desistiu de ter um programa autónomo, trabalhista e de defesa do seu modelo social. Deixou de se perceber a sua utilidade, para além da alternância (e, na Alemanha, recorrente convergência) com a direita liberal e conservadora.
É bom recordar que, em 2013, o SPD, que ficou em segundo, perdeu a oportunidade de fazer uma “geringonça” com os Verdes e a Esquerda, preferindo aliar-se a Merkel, que tinha tido um excelente resultado, mas sem maioria. Desde então, não parou de cair, com exceção de 2021, onde, ainda assim, teve exatamente o mesmo resultado de 2013. Até esta tragédia.
No domingo, o SPD teve menos do que em 1933 (18,25%), quando os nazis chegaram ao poder. E a AfD teve três vezes mais apoio entre os trabalhadores do que o SPD. Em 2013, a divisão do voto trabalhador era de 35% para a CDU, 27% para os SPD e 6% para a AfD; em 2017, 25% para a CDU, 24% para o SPD e 5% para a AfD; em 2021, 20% para a CDU, 26% para o SPD e 20% para a AfD; nas vésperas destas eleições era de 22% para a CDU, 12% para o SPD e 37% para a AfD. Em 1998, 54% diziam que confiavam mais no SPD para garantir a justiça social, descendo para 40% em 2021 e 26% em 2025.
NA PIOR ALTURA, SIDECAR DA CDU?
É perante isto que o debate que se segue obriga a clarificações. Com o que aconteceu nos EUA, boa parte da direita democrática começa a perceber que, ao seu lado, está a quinta coluna. Mas a proposta de autonomia militar da Europa levanta um outro debate que, como outros, temo que seja ignorado pelo centro-esquerda: quem paga o investimento em defesa?
A proposta que estará em cima da mesa será a de desmantelar o Estado Social, que a direita liberal e conservadora quer acabar de privatizar. É tratado como um luxo que só podemos pagar por não termos de nos defender, e não como o mais forte instrumento de proteção das nossas democracias e daquilo a que, de forma abusiva, se chama o “nosso modo de vida”. Não é difícil imaginar o que acontecerá se esta opção vencer: os aliados de Trump e de Putin vencerão por dentro enquanto nos tentamos defender por fora.
A escolha entre a Defesa e o Estado Social é a de quem quer poupar os do costume de contribuírem para pagar a fatura. Ou o centro-esquerda tem outra resposta para este dilema, ou pode começar a vender as suas sedes, que a alternância da direita liberal e conservadora será feita com outros, à sua direita.
Friedrich Merz representa uma guinada da CDU à direita. O milionário, que alimentou um forte antagonismo com Angela Merkel, tem uma relação promiscua com os interesses corporativos (sobretudo norte-americanos) e uma visão vincadamente neoliberal da economia e do futuro do Estado Social. Se a opção do SPD for, como tudo indica que será, voltar a ser o sidecar desta CDU, para defender a Alemanha da extrema-direita, é possível que só esteja a preparar a Alemanha para a vitória da AfD, porque deixa de haver alternativa à CDU. A escolha é difícil, mas talvez seja definitiva. E talvez a festa que alguns fazem com a tragédia de domingo seja porque sentem que, para travar a extrema-direita, o centro-esquerda se suicida, dando votos à extrema-direita.»
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