16.4.21

A saúde como condição da confiança e a confiança como condição da saúde

 


«Vivemos, há mais de um ano, uma grave situação de saúde pública que, pelo que se passa no mundo, no continente, no país, na comunidade a centenas de metros e mesmo para muitos(as) na própria família, é dispensável especificar.

Daí, não obstante o quanto elas sejam, como são, constrangedoras e, mesmo, duramente lesivas (individual e colectivamente) do ponto de vista de qualidade de vida, economia, cultura, etc., em geral, são pacificamente aceites como devendo ser cumpridas as medidas de prevenção individuais e colectivas preconizadas pelas autoridades de saúde e, mesmo, desde que democraticamente sustentadas, pelo poder político. Isto também decorrerá do reconhecimento geral, ainda que implícito, de que, independentemente de se estar ou não numa situação de risco epidemiológico (se bem que neste caso tal seja mais evidente), se domínio individual e público há como eminentemente social, esse domínio é o da Saúde.

Por um lado, as condições, contextos e consequências de saúde individual são indissociáveis das de saúde pública (e vice-versa) e, por outro lado, nesta concepção unificada (individual e pública), a saúde é indissociável da sociedade em geral (economia, trabalho, habitação, educação, cultura...).

Talvez por isso, consciente ou inconscientemente, em geral e em regra (com excepções, como qualquer regra), tem havido uma situação de confiança social, sem dúvida no Serviço Nacional de Saúde, sim, mas também, no essencial, nas autoridades de saúde e no poder político quanto à gestão da situação sanitária.

Enfim para além da qualidade e suficiência das infra-estruturas (hospitais, centros de saúde, laboratórios etc.), dos meios técnicos, da tecnologia, do suporte científico e da competência, consciência e suficiência dos profissionais de saúde, é determinante neste domínio a confiança na acção das respectivas instituições e nas intervenções do poder político que suporta essa acção.

E é claro que muito mais determinante é a confiança nas instituições quando se está numa situação epidemiológica, cuja resolução, ou pelo menos mitigação, depende de uma resposta atitudinal e comportamental individual e colectiva harmonizada no modo, espaço e tempo.

Vem esta introdução a propósito do que se tem passado com as vacinas preventivas do risco de contaminação pelo vírus SARS-CoV-2 e possível contracção (ou agravamento) da doença covid-19. Naturalmente que não se pretende aqui mais do que uma não qualificada e modesta opinião pessoal e não, como o sapateiro, “ir além da fivela”.




O conteúdo e forma como foi comunicada a disponibilidade de vacinas (único meio farmacêutico até agora conhecido como podendo responder à situação), ainda para mais, quase euforicamente (o que se compreende, numa situação como a que vivemos), da sua segurança, eficácia, suficiência e relativamente próxima aplicação, com os óbvios reflexos emocionais, económicos, sociais e políticos daí decorrentes, induziu um alto nível de confiança social nas autoridades de saúde e na inerente acção do poder político. Contudo, com isso, foram criadas expectativas individuais e colectivas que projectaram responsabilidades institucionais e políticas quanto às condições e resultados da concretização dessas expectativas.

Ora, o que se tem passado no que respeita às vacinas covid-19, quer quanto a respeitantes decisões institucionais e políticas, quer, muito, na relacionada comunicação oficial (alheamo-nos aqui de comentar, não obstante o seu impacto, para o bem e para o mal, da comunicação social corrente), não só tem defraudado essas expectativas como, mais perigoso do ponto de vista de saúde pública, fragilizado a confiança, se não no Serviço Nacional de Saúde pelas provas de resposta esforçada e competente que tem dado e continua a dar, nas autoridades de saúde e no poder político que com estas se articula.

Todos sabemos o que se verificou e declarou como indiciando hesitação, insegurança, incerteza, falta de consistência, já nem se diz ao nível da Organização Mundial de Saúde mas das autoridades de saúde e poder político no nível e âmbito da União Europeia, concretamente, na negociação e contratualização com as farmacêuticas do fornecimento das vacinas, quer na distribuição destas aos países membros. E agora, mesmo, quanto ao divergente (e daí, fragilizador da confiança social) entendimento científico, tecnológico e político quanto à segurança e eficácia das vacinas, pelo menos de algumas. O que, evidentemente, suscita o risco de perda de confiança nas instituições de saúde, neste caso europeias.

Por cá, ao nível nacional, por não faltarem motivos (quer de ordem decisional, quer, muito, de ordem comunicacional), também não ficámos imunes a esse risco de perda de confiança social.

E não se referem exemplos que não devem ser factor de perda de confiança, como foi, inicialmente, o caso de dever ou não haver recurso às máscaras como medida de protecção individual e outros idênticos, visto que, como foi e é, então e agora, bem explicado e há que reconhecer como convincente, tal decorreu de um processo de melhoria do conhecimento em curso e, simultaneamente, de gestão curial dos meios e da sua priorização numa situação de emergência.

Referimo-nos, sim, a outros exemplos projectores de dúvidas e incertezas que, num domínio em que está em causa o valor humano e social que mais importante é para cada um e para a sociedade, a Saúde, conviria serem melhor respondidas, sob pena de uma perigosa perda de confiança social nas instituições e no poder político.

“A prevenção da mortalidade é o primeiro objectivo prioritário do plano de vacinação”, ouvimos publicamente, desde há muito, o Sr. Coordenador do Grupo de Trabalho responsável pelo Plano de Vacinação.

Quem tem morrido como sendo o motivo oficialmente comunicado a doença covid-19 ou algum outro de algum modo associado a esta doença? Nem é preciso ouvir especialistas e autoridades, basta atentar na respectiva estatística diária meramente descritiva: pessoas com morbilidades ou deficiência graves e, sobretudo, em muitos dias exclusivamente, as pessoas com mais idade. Não apenas as com mais de 80, mas, quotidianamente, com mais de 70, 60, até 50 anos.

Tranquiliza e suscita confiança saber que os utentes de lares (locais de elevado risco de contágio e mesmo de morte, por razões óbvias) e aquelas, em geral, com mais de 80 anos já beneficiaram, e bem, da prioridade da vacinação. Mas da restante população com mais idade (abaixo dos 80 anos), não se encontrando naqueles grupos (utente de lares ou com comorbilidades), muito poucas receberam qualquer vacina.

Dir-se-á, disse-se, com razão, que tal se deve à escassez de vacinas. Mas, entretanto, desviou-se a aplicação do plano da vacinação das pessoas com mais idade (ou seja, pelas razões já aduzidas, da “primeira prioridade, evitar a mortalidade”) para a vacinação de algumas profissões consideradas essenciais para a “resiliência do Estado” e com risco acrescido (acrescido, porque, afinal, numa situação de pandemia, por definição, risco corrente toda a gente corre) no exercício efectivo dessa profissão.

É inquestionável que tais profissões são essenciais para a “resiliência do Estado”, não apenas permanentemente (aliás, nesta óptica, económica e socialmente todas o são) mas ainda mais na actual situação. Desde logo, evidentemente, os profissionais de saúde, que foram, e bem (não podia ser de outra maneira, não “apenas” pela saúde e vida estritamente deles próprios mas por todos em geral que deles estamos dependentes no tratamento, se necessário), os primeiros a ser vacinados.

Mas, à parte os profissionais de saúde, é preciso ter em conta que, num domínio como a saúde e numa situação como a presente de escassez de vacinas (porque, é óbvio, o ideal é que fosse possível com segurança e eficácia, vacinar toda a população) a “essencialidade” de qualquer profissão não é de todo objectiva, absoluta, há outras profissões (relativamente) também essenciais na (à) sociedade e até com acrescido risco covid pela natureza e condições do seu exercício e ou contexto laboral deste.

E esse critério de priorização por profissões, considerando a sua essencialidade social e o acrescido risco talvez devesse ter sido melhor fundamentado e comunicado publicamente.

Por outro lado, que haver, estabelecimento de prioridades por escassez de vacinas e definindo-se como essencial para a “resiliência do Estado” determinada profissão, o entendimento dessa essencialidade para efeito de priorização na vacinação não poderia, na sua aplicação, decorrer da mera detenção do estatuto dessa profissão, dissociado do concreto risco acrescido, ou seja, do seu efectivo exercício. O que, tanto quanto veio a público (inclusive, com a credibilidade de o ser comunicado, qualificadamente, parte de pessoas da própria profissão), não terá rigorosamente acontecido.

Mas algo que também do ponto de vista de comunicação (não se discutindo a bondade da decisão que lhe está subjacente) poderá induzir o risco de perda de confiança social é, por exemplo, o coordenador do Plano de Vacinação declarar agora, quanto a ter sido adoptado o critério de prioridade de vacinação em certas profissões, que “se continuarmos a vacinar por grupinhos, vamos acumular vacinas em armazém” (PÚBLICO, 1/4/2021)

O risco é o de, não se questionando o alto nível ético e a preocupação com a saúde pública que o almirante Gouveia e Melo tem demonstrado, o de poder ter sido entendido publicamente (com consequente perda de confiança institucional) que o critério de vacinação vai passar a ser a mais avançada idade das pessoas não por ser o “primeiro critério”, “prevenir a mortalidade”, mas para não se “acumularem vacinas em armazém”.

Mas, sob este ponto de vista de confiança social, mais preocupante será, no entanto, o que se tem passado com a vacina Astrazeneca, quer a nível da União Europeia (sobretudo), quer a nível nacional. Não há muito tempo, a Autoridade de Saúde Europeia (EMA) e a Comissão Europeia (CE), com (natural) seguimento das autoridades de saúde e do poder político nacional, prescreviam que essa vacina não deveria ser administrada a maiores de 60 anos, porque, não tendo sido feitos os necessários ensaios, “não há evidências da sua eficácia nesse grupo etário”.

Que tivesse sido oficialmente explicado e até pelo tempo decorrido e pelas condições de aplicação (doseada) dessa vacina, esses suficientes ensaios não foram (ainda) realizados. Porém, agora, é a mesma EMA e a mesma CE a orientar que é precisamente (só) aos maiores de 60 anos que essa vacina deve ser administrada, ainda por cima divergindo várias países nessa idade e mesmo, no caso de um (Dinamarca), deixando de a aplicar.

Há que reconhecer que tal (nova) orientação da autoridade de saúde europeia e Comissão Europeia não poderia deixar de ser seguida pelas autoridades de saúde e pelo poder político nacional. Todavia, também com este processo e na insuficiência e pouco clareza de comunicação que permitisse melhor compreender tais pelo menos aparentes contradições, se terá perdido confiança social nas instituições envolvidas e, claro, sobretudo nas vacinas, pelo menos nessa.

Depois, ainda a este propósito, um outro exemplo desse risco de perda de confiança é o de declaração pública (9/4/2021, RTP) - a directora-geral de Saúde (a quem é merecido o maior respeito e consideração pelo inquestionável esforço e competência que tem colocado ao serviço da Saúde Pública), ao assumir e determinar a nível nacional tal (nova) orientação e especificamente dirigindo-se a quem já tomou a primeira dose dessa vacina, pretender tranquilizar essas pessoas dizendo que até lá, à data da segunda dose, “talvez já haja informação adicional”, sem acrescentar outra explicação a respeito.

O que é que – ouve-se alguém perguntar -, entretanto, vai permitir essa até agora desconhecida por falta de ensaios clínicos mas também agora importante como argumento para uma autoridade de saúde, “informação adicional"? A vacinação “experimental” com essa vacina (só) dos maiores de 60 anos, é o que muitas pessoas, por aí, (se) perguntam.

Por que não se suspende a vacinação com essa vacina, dada a perda de confiança nela (independentemente de esta até poder ser injustificada, como garantem especialistas da área, autoridade de saúde e poder político) e se diligencia para a substituir por outra – perguntam as pessoas, não obstante, a maior parte, acabar mesmo por se vacinar com ela quando for chamado.

Dada a reconhecida credibilidade das entidades envolvidas, é de admitir que todas estas dúvidas e receios sejam – virá a provar-se futuramente – objectivamente infundados. Mas, a não serem esclarecidas de outra forma que não seja o de invocar o argumento de cariz gestionário “risco/benefício”, para cada pessoa, que como leiga em medicina, farmácia, virologia, pneumologia ou cardiologia, pensa no risco para a sua saúde e para a sua vida por não saber se, apesar da enorme diferença de probabilidades estatísticas, lhe calha o “benefício” ou a concretização do “risco”, é mais do que compreensível a eventual perda de confiança nas instituições e poder político quanto a esta matéria, com eventual projecção para outras.

E então volta-se ao início, à necessidade de reflexão (e consequente acção) quanto ao risco de degradação da confiança, (individual e social), tão determinante esta é como condição da saúde (individual pública), tal como, vice-versa tendo em conta o que precede, a confiança é condição de(a) saúde.»

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