7.11.12

O verbo e a verba



Com todas as diferenças ideológicas que me separam de Bagão Félix, considero que é umas das pessoas que, nas últimas semanas e com um discurso que todos compreendem, melhor tem explicado como é profundamente errado o caminho que este governo está a seguir, no seu experimentalismo devastador para o Estado social. 

Fá-lo, uma vez mais, em artigo de opinião no Público de hoje (sem link). Mesmo não concordando inteiramente com tudo o que escreve, destaco alguns parágrafos (e divulgo, também, o texto na íntegra): 

«Se no princípio era o verbo (refundar), no fim é a verba (redução estrutural da despesa). (...)
Só há uma forma consistente de sanear as finanças públicas: menos despesa para menos impostos e não mais impostos para mais despesa. O verdadeiro imposto é a má despesa: a despesa injustificada, ineficiente ou injusta. (...)
O debate sobre a despesa tem-se centrado agora à volta do Estado social. Importa recordar que este é uma conquista civilizacional que, embora com muitas imperfeições e falhas, tem contribuído para uma maior coesão social e correcção de desequilíbrios. Sem pensões e subsídios, a pobreza não atingiria apenas 18% da população, antes alcançaria 41%. (...)
A sustentabilidade do Estado social passa, em primeiro lugar, por se gerarem os recursos necessários para a sua preservação e reformulação. (...)
A salvaguarda do Estado social exige tempo, perseverança, atitude construtiva, sentido de responsabilidade, humanismo radical e capacidade de resistir aos interesses protegidos. (...) É uma questão estruturalmente geracional que os portugueses julgarão. De outra forma, não haverá respostas para as crianças e jovens de hoje: o futuro de Portugal!»


Texto na íntegra:


O verbo e a verba 

1. Se no princípio era o verbo (refundar), no fim é a verba (redução estrutural da despesa). Não basta a contenção temporária dos gastos por via do “factor preço” (diminuição de salários, congelamento de carreiras, não actualização ou decréscimo de prestações sociais) ou falaciosas fusões departamentais pelas quais se muda no pormenor para não tocar no essencial. Para a redução ser duradoura, é preciso actuar sobre o “efeito volume”, isto é, considerando o peso e as funções do Estado. 

As alternativas à redução da despesa estão esgotadas ou são nocivas a prazo. Refiro-me aos impostos, que já ultrapassaram o limite do tolerável e são um factor atrofiador do crescimento económico e a novos endividamentos que só adiam as soluções e minam a credibilidade do país. 

Só há uma forma consistente de sanear as finanças públicas: menos despesa para menos impostos e não mais impostos para mais despesa. O verdadeiro imposto é a má despesa: a despesa injustificada, ineficiente ou injusta. Não há despesa grátis. A gratuitidade aparente é um modo de enviesar o seu pagador final: o contribuinte ou as futuras gerações. 

2. O certo é que a força da inércia despesista tem sido fulminante. Entre 1995 e 2010 — período com 84% de governação socialista — a despesa corrente do Sector Público Administrativo aumentou 107% ( já descontada a inflação), enquanto o PIB real só cresceu 27%! E se parte desse aumento é explicado por factores não controláveis pela acção governativa (em particular, o peso da demografia nas despesas sociais e, em parte, os juros da dívida pública), é legítimo questionarmo-nos sobre o que mudou de substantivo no Estado para se gastar muito mais. É este escrutínio que se deve fazer, despesa a despesa, departamento a departamento, instituição a instituição. Aprofundar o que se faz bem, erradicar o que se faz mal e melhorar a relação custoeficácia do que pode e deve ser melhorado. Sempre examinando a verdadeira prova dos nove para a justificação da intervenção pública: é a utilidade marginal da despesa maior do que a desutilidade marginal do imposto? 

Para tal, é preciso distinguir, com clareza, as funções de soberania e de poderes de autoridade do Estado, as funções sociais e de interesse colectivo e as actividades de carácter meramente instrumental. E discernir as soluções para os problemas detectados que poderão passar até pelo reforço do papel do Estado, ou então por diferentes formas de desburocratização e desregulamentação, subcontratação, concessão, privatização ou eliminação de redundâncias.
Tudo isto, sem alimentar fantasias quanto ao Estado providencial, nem dogmas de fé quanto ao poder do mercado. Este, pela sua própria natureza, não tem suficiente dimensão social. E o Estado, por sua vez, não entende o mérito e igualiza a mediocridade que assim se torna regra. Enaltece o gastador, mas desconsidera o poupador. Não tem suficiente dimensão económica. 

3. O debate sobre a despesa tem-se centrado agora à volta do Estado social. Importa recordar que este é uma conquista civilizacional que, embora com muitas imperfeições e falhas, tem contribuído para uma maior coesão social e correcção de desequilíbrios. Sem pensões e subsídios, a pobreza não atingiria apenas 18% da população, antes alcançaria 41%. Ou seja, a redistribuição assim operada esbate significativamente uma estrutura do rendimento nacional em que o factor trabalho tem um peso inferior ao que deveria resultar da actividade económica. 

Com taxas anuais médias de crescimento do Produto muito distantes de décadas anteriores, com elevadas e persistentes taxas de desemprego, com uma demografia que pressiona intensivamente os custos da protecção social e desequilibra as transferências intergeracionais, estamos perante uma difícil equação. 

Afinal, a distribuição sempre depende da criação de riqueza, embora alguns o esqueçam. O tudo para todos já não existe. Ou melhor, nunca existiu… Assim sendo, a sustentabilidade do Estado social passa, em primeiro lugar, por se gerarem os recursos necessários para a sua preservação e reformulação. 

Ignorar esta situação é, isso sim, cavar a sepultura do Estado social. E também não bastam as reformas paramétricas. Apenas adiam a questão fundamental. A via decremental dos benefícios tem limites, sob pena de, qualquer dia, se chegar ao ponto de, caricaturalmente, se garantir a sua sustentabilidade reduzindo-os a uma insignificância. 

Além disso, a globalização veio alterar a capacidade dos poderes públicos, como tão bem refere Bento XVI na Caritas in Veritate: “Outrora talvez se pudesse pensar, primeiro, em confiar à economia a produção de riqueza para, depois, atribuir à política a tarefa de a distribuir; hoje tudo isto se apresenta mais difícil, porque, enquanto as actividades económicas deixaram de estar circunscritas no âmbito dos limites territoriais, a autoridade dos governos continua a ser sobretudo local.” 

4. Temos de saber enfrentar esta realidade com uma renovada moldura do contrato social. Não apenas tornando-o mais eficiente e mais ético, reprimindo os abusos e os desperdícios, como igualmente promovendo uma mais sólida cultura de partilha de riscos. Um contrato que preserve o seu alicerce público, mas que não iluda as pessoas através de um Estado totalizante, na saúde, nas pensões, na educação. Um contrato que, equilibrando direitos e deveres sociais, contribua para uma melhor coabitação entre um Estado providencialista (de prover) e uma sociedade mais previdencialista (de prevenir) e entre a justiça comutativa e a justiça distributiva. Um “Estado possibilitador” que tenha um critério social coerente e congruente com uma sólida igualdade de oportunidades e não com um ilusório igualitarismo. Um Estado social que não confunda a provisão de direitos sociais com a sua directa produção. Um Estado social, enfim, que não dissocie o carácter redistributivo de uma profunda reforma fiscal. 

Em suma, chega de discutir apenas segundo a tentação ideológica-maniqueísta, quando estamos perto do precipício. Como também bom será que não nos deixemos resgatar tecnicamente por um exercício de régua e esquadro de funcionários da troika, que não conhecem o Estado e o país profundo. A salvaguarda do Estado social exige tempo, perseverança, atitude construtiva, sentido de responsabilidade, humanismo radical e capacidade de resistir aos interesses protegidos. Exige, fundamentalmente, espírito de convergência na diferença. Ninguém se pode isentar das suas responsabilidades por razões tácticas, fúteis ou de curto prazo. É uma questão estruturalmente geracional que os portugueses julgarão. De outra forma, não haverá respostas para as crianças e jovens de hoje: o futuro de Portugal! 
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2 comments:

Septuagenário disse...

Verbo não significa palavra? palavras, palavras e mais palavras!

Já gostei mais deste "senador", se bem que outros mais nos enganaram descaradamente.

Mas que vida a nossa!!!

Fernando Oliveira disse...

Boa tarde!
Na verdade, encontrarmos tantos pontos de convergência com o discurso de personalidades como Bagão Felix diz bem do ponto a que chegamos.
Saudações.